quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Os Bailes da Ribeira

Domingo 16h00min do mês de dezembro, o dia está feio, chove, faz frio, mas nada disso a intimida. Ela muda a roupa, procura uma domingueira, como se diria no Brasil, chama um taxi e pede: Cais do Sodré. 
O fogueteiro, é assim que os taxistas são chamados em Lisboa, lhe faz mil e uma perguntas, mas ela não perde o bom humor, afinal estava indo divertir-se e não queria se aborrecer com nada. O motorista pergunta-lhe de onde ela é como é costume de todos os portugueses, taxeiros ou não, e ela responde que é do Brasil. “De certeza de São Paulo”. Não senhor, do Nordeste ela responde. Ele quase para de dirigir para olhar para trás.  “A menina não tem qualquer jeito de Nordestina, aliás, se não fosse pelo português do Brasil, passaria, facilmente, por uma européia”. Ela sorri e pergunta: “Faz alguma diferença de onde eu sou ou tenha vindo”? E o taxeiro, olhando-a pelo retrovisor diz.  “Não, não faz, a menina não ia deixar de ser bonita sendo de qualquer lugar”. Ela sorri, afinal recebeu um elogio misturando com um galanteio.  Os portugueses homens são assim, não perdem uma oportunidade.
Pensa consigo, ainda bem que já está a chegar; já estão em Santos, viera por Algés, era mais perto. Olha o relógio, 04h30min.  “Já começou, quem será que está a tocar hoje”. 
O taxi para na frente da estação de comboio do Cais Sodré, ela paga a conta, 12 euros, sai do taxi e dirige-se a faixa de pedestres, para atravessar a rua.   De onde está já pode ver a movimentação das pessoas no andar de cima do Mercado da Ribeira.  Pessoas passam para lá e para cá. Alguns estão sentados.  Há muitos carros estacionados e muita gente se dirigindo para a porta.
Os homens estão, na sua grande maioria, vestidos a rigor, isto é: se são mais velhos, se tiverem mais de 60, sempre estão de terno e gravata: acreditem se quiserem, eles usam, no domingo à tarde, terno e gravata. As mulheres tiram os seus pois e brilhos dos armários, estão todas emplumadas, isto as mais velhas. As senhoras têm os cabelos armados, roupas antigas, que não deixam de ter certo charme, apesar de gastas pelo tempo e muito fora de época, mas elas têm de vestir para ir ali, afinal tem de impressionar os parceiros, com exceção de uma delas, uma bem magrinha que estava lá todos os sábados e domingos e ia com o seu marido, que era cego. A senhora magrinha estava sempre com algum vestido chamativo e às vezes trocava-o no meio do baile, era interessante ver aquilo.
Chega à porta do Mercado, ela gosta do que vê ali, sempre olha os azulejos, as escadarias, o teto. Gosta da cúpula, prefere olhá-la pelo lado de fora, é linda.  Sobe lentamente as escadas, vai fazendo o seu charme também, sabe que chama atenção e não faz nada para disfarçar isto. Vai até a bilheteria. Os bilheteiros lhe cumprimentam, não só eles, os seguranças também.  O Seu Jorge virou quase um seu guarda costa; como ela sempre estava sozinha ele dava um jeito de ficar passando por perto para ver se alguém a estava importunando.  Não só o Sr. Jorge, mas também o Ricardo, outro que não lembra o nome, enfim, ela era vigiada.
Desde o primeiro dia que ali esteve ficou conhecendo estas pessoas, que sempre lhe deram uma atenção especial.  Ela não entendia bem o motivo, talvez por ela ser muito diferente das pessoas que freqüentavam o local.  Possivelmente tenha chamado atenção pela maneira de vestir completamente diferente das frequentadoras: algumas, as mais velhas, mostrando as suas relíquias; as meeiras usando roupas coladas, mostrando todo o potencial, muitas delas estavam ali para o famoso “engate”, outras não, estavam ali apenas e tão somente para divertir-se como ela, entretanto, ninguém deixava de jogar um certo charme sedutor, afinal tinham que despertar a atenção de alguém que as chamassem para dançar.
Os homens pareciam que tinham um código de comportamento: quem não estava na pista, estava ao redor dela com as mãos nos bolsos, observando, escolhendo a presa. Os mais velhos com calças sociais; os mais novos e os que pensavam serem novos, de calça jeans, camisas de mangas longas e o pulôver, este último, se não vestido, jogado nas costas com as mangas enroladas na frente.  Alguns, os que se julgavam mais sensuais e mais irresistíveis, encostavam-se nas paredes, colocando a mão direta em um dos bolsos e o pé levantado apoiado na parede, procurando uma posição charmosa, e ficavam ali á espera de escolherem ou serem escolhidos, um olhar bem dado e olhos encontrados era a senha.
Ela sorria sempre de tudo isto.  Gostava de ver o pedreiro bigodudo que almoçava no restaurante em Carnaxide todo sujo de tinta, transformado em galã de telenovela: calça social, camisa pólo ou camisa de listras de mangas compridas, pulôver jogado à maneira, cabelos arrumados, cortados à direita e sem sair do lugar, parecia que ele passava algum produto para que o bicho não movesse.  Este senhor sempre estava sozinho. Chegava, ficava rodando por ali e, de repente: “uma presa”! Dirigia-se a uma das mulheres que estavam, por sua vez, fazendo todo o charme possível para serem chamadas para dançar, e lá se vão os dois a rodopiar pelo salão.  Gostava de ver estas investidas, era muito interessante, mas a si parecia que ali algum comando era da própria mulher, que demonstrava ser ela a escolher os seus pares, porque se o charme estivesse sendo jogado para um e outro é que a tirasse para dançar, ela simplesmente dizia não. Os homens, quando ouviam um não, apesar de ficarem chateados, nada diziam e, quando muito, saiam com cara zangada, nada além disso. Ela mesma cansou de dizer não a muitos, mui principalmente a um rapaz novo, que, apesar de bonito, tinha cara de doido, completamente doido, os olhos dele muito azuis, pareciam estar sempre fixados em algo, era como se ele utilizasse drogas, nunca soube se era real ou não, mas sempre se recusou a dançar com ele, embora ele nunca deixasse de insistir.
Um outro, também jovem, e completamente maluco, este era de carteirinha, sempre procurava tirá-la para dançar, ela fugia quase todas às vezes, era só vê-lo encaminhando-se para sua direção e ela dava um jeito de sair do local, ir ao banheiro, ir ao bar. O cara além de maluco não cheirava lá muito bem. Esse tinha uma amiga que tinha um problema na perna, usava aqueles sapatos com uma sola enorme para ficar do mesmo tamanho da outra perna, mas isto não lhe intimidava, e ela passava a tarde dançando e feliz.
Havia um rapaz que tinha um retardo mental, e o seu pai e a sua ama levavam-no para o baile aos domingos. Um dia, ela ficou com pena do homem-menino e o tirou para dançar. Foi um alvoroço, todos que estavam próximos ficaram ali  olhando-a dançar com o rapaz, fazendo ele rodopiar. Ela sorria muito, e dançou umas três músicas seguidas, já com a platéia atenta do pai e da ama que, admirados, ficaram ali olhando e tomando, acha ela, conta dele. No final a ama lhe disse que ela tinha conseguido algo que ninguém nunca fez: que era  fazê-lo rodar, ele não girava porque tinha medo, e ela o tinha feito girar muitas e muitas vezes, embora sentisse a pressão da mão dele na sua.
Quando dos intervalos ela ia para o balcão do bar, pedia um uísque ou um vinho do porto, pagava a conta, sentava-se, se tivesse lugar, em uma das mesas e ficava naquele salão esperando o som retornar e olhando as tentativas de "engates" o jogo de sedução, os casais se formando. Nesses momentos, algum segurança se posicionava em lugar estratégico, o que impediu o cigano moreno dos cabelos brancos, que ia de paletó e gravata, achando-se belo e sedutor, de aproximar-se.  Ela dava graças a Deus por esta proteção, mui principalmente em relação a esse senhor, que nem mesmo quando estava com a mulher e filhos; ele levava a todos para o baile nos domingos, escondia a sua “excitação”. Passava por ela e dizia alguma coisa não muito cortês, mas que traduzia o seu desejo, a sua vontade.  Um dia ele disse não entender o que uma mulher tão bonita fazia sozinha num baile da Ribeira. Ela sempre fazia de conta que não ouvia nada e até sorria, mas não queria qualquer proximidade com aquele cidadão.
Ouvia muitas estórias, seja no banheiro, seja perto do palco, havia sempre alguém querendo pegar alguém. Achava interessante tudo, as roupas, as conversas, “os engates”, os irresistíveis, garanhões de carteirinha, os respeitadores, os inocentes, as charmosas. Via naquelas vidas a própria vida, era como se olhasse um espelho. Procurando engates ou não, ali estavam pessoas solitárias, que precisavam estar com outros em algum momento, para espantar a tristeza, a solidão, a mesmice do dia a dia.
Conheceu ali muitos garçons, a exemplo do Martinho do restaurante Farol em Cacilhas, que lhe trata muito bem quando ali aparece para um bacalhau ao farol, um polvo a lagareiro, para uma lula grelhada ou para as famosas “ameijoas a bulhão pato” prato que é imbatível.  Lembra do Victor, que era apaixonado por uma brasileira, mas que sofria por este amor, porque se afastara da moça por não lhe poder oferecer uma vida razoável. Conheceu a Fernanda, uma angolana para lá de charmosa, a mulher mais bem vestida que ela vira na Ribeira. Conheceu Tomáz, que lhe falava de Camilo Castelo Branco, de Eça de Queiroz, e que tinha uma “affair” com uma brasileira, que não o acompanhava porque trabalhava de acompanhante de uma senhora portuguesa e não tinha folgas todos os domingos. Também um senhor que lhe falou, em três ou quatro danças, toda a sua vida, e depois lhe perguntou como faria para vê-la outra vez e fora dali. Esse senhor tinha estilo, encontraram-se em muitos outros lugares em Lisboa, lugares frequentados pelos mais chics, em uma vez em que se viram ele estava com uma jovem em uma confeitaria em Alvalade, ele apressou-se em apresentá-la como sua filha. Dito senhor era aposentado da aeronáutica e morava, como ele lhe disse, em Cascais: parecia quer impressioná-la. Talvez, se não fosse o avançado da idade, ela até teria tomado alguns cafés com o senhor, inclusive porque ele fora aprovado pela sua amiga, uma portuguesa cheia de preconceitos.
Viu brigas de mulheres, brigas de marido e mulher, choros de tristeza. Termino de romances, começo deles, voltas comemoradas com muito calor, enfim, viu a vida e, realmente, não se perdoaria se não tivesse frequentado tais bailes.
Dançava com todos, evidentemente com aqueles que ela pensava que eram mais escrupulosos. Não estava ali para nada, não queria, como eles diziam, “engate”, queria apenas dançar, e foi o que muitas vezes fez nos Bailes da Ribeira. Quartas, sextas, sábados e domingos, estes eram os dias dos bailes, dias que ela esperava ansiosa, pois adorava dançar e sabia que, apesar de muitos conselhos dos “nobres” de que aquele não era o lugar para uma pessoa de família, ou uma doutora, enfim, para ela frequentar, naquelas quatro horas era feliz, era ela mesma e, talvez, tenha feito alguns felizes.
Espera que tais bailes não tenham acabado, pois eles são uma verdadeira felicidade para aqueles que, discriminados pela sociedade, seja porque pobres, seja porque velhos, seja porque trabalhadores braçais, imigrantes, enfim, por algum motivo não são aceitos em outros lugares, mas que precisam ser felizes, ter um  momento de alegria, de liberdade, de esperança até.





















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