Perdeu a memória, a prova da realização dos sonhos, metade da sua própria
vida. A tela negra do computador á sua
frente lhe mostra isto. Pois é: a máquina, juntamente com o universo,
conspirando contra si.
Apagou-se tudo, simplesmente, apagou-se tudo, os últimos cinco anos da sua vida se foram num
piscar de olhos. Assim mesmo, num piscar de olhos, pior que novela que em seis
meses uma pessoa nasce, cresce,sofre, faz misérias com os outros e, em algumas
delas, morre.
A tela, de repente, ficou preta. Ligou, desligou, ligou outra vez, nada,
nem mesmo o som peculiar da máquina dando
partida, ou melhor, para ser mais
moderna, “start”. A máquina vinha dando sinais de que estava
saturada de si, apesar da sua pouca idade, isto é, dela; desde os
primeiros dias de convívio mostrou-se incompetente, mas ela, numa teimosia
sem limites, foi adiando a separação; fez muitos “back up”, muitas cópias de arquivo, mas, nos últimos
meses, imbecilmente, esqueceu-se da máquina, e ela, para lhe mostrar o seu poder, simplesmente, apagou as suas lembranças e um pouco da sua
vida foi-se ali.
Bem verdade que a desgraçada não pode competir com a sua memória, pois,
certamente, pelo menos por algum tempo,
ela não vai esquecer do que aconteceu,
mas, sexagenária como está, o dia em que a memória falhará não esta muito
longe,e aí terá de maldizer a miserável da máquina. Como ela vai se recordar
visualmente dos momentos passados
e registrados em fotos, em textos, em
mensagens gravadas?. Como miserável? Pergunta olhando aquela tela inútil.
Pensa na última viagem que fez, se
bem que ela tem alguns momentos que deveriam ser apagados mesmo, não só da
memória virtual, mas da sua própria memória, mas foram registradas em fotos
muitas paisagens que, talvez, pessoalmente, não volte a ver. Lembra de quantas fotos tirou do por do sol:
nenhum igual ao outro, no Bósforo, no
Mediterrâneo, no Atlântico. Nada, não
poderá dividir mais com ninguém este fenômeno
maravilhoso que é o final do dia, que, quanto mais bonito, mais prenuncia
um novo e belo dia de esperança. Mesquitas, Igrejas, oceanos, rios, nada, não pode mais partilhar nada, tudo foi apagado
Pensa outra vez: “ o Universo conspira contra mim, ou quem sabe a meu favor”.
Será que isto não é um aviso de que ela tem mesmo de se desligar de algo, que, no fundo no fundo, embora ela não queira mesmo encarar a
realidade, lhe está fazendo muito mal?
Será que a máquina, evidentemente mais racional e inteligente de que
ela, quer lhe ajudar a retirar da sua vida,
aquilo que já devia ter saído há muito tempo? “Só pode ser isto”! Não há justificativas outras para uma pane tão miserável.
Perdeu mesmo tudo, é irrecuperável, mas, mesmo assim vai levar a
máquina para um técnico, embora saiba
de antemão a resposta: é irrecuperável,
o hd, o não sei mais o que, não funciona mais, todos os arquivos foram
apagados, não há recuperação.
Está irritada, afinal tinha coisas importantes ali, muitos arquivos
pessoais, comprovantes de pagamentos, contos, histórias, romances começados,
enfim, a sua vida,mas o que mais lhe
irrita mesmo são as fotos. Mesmo que retorne a todos os lugares em que esteve, nada, nada mais será igual. O
momento passou e as coisas não voltam, e
com elas o momento do lugar. A gente
pensa que as coisas não mudam; não e verdade, elas mudam sim, mudam a todos os
momentos, não percebemos isto se a mudança não nos afeta, seja emocionalmente,
seja materialmente, mas elas estão em movimento sempre, e, portanto, se você
consegue, como diria um vizinho, “estagnar” o momento na fotografia, você o pereniza
para sempre, exatamente como ele aconteceu. Lógico que tudo fica estático, o que vai fazer o
movimento da foto é a sua própria memória, mas a foto lhe traria esta
recordação, faria com que o seu
pensamento retornasse à aquele momento e muitas, muitas lembranças seriam
reavivadas, sejam elas boas ou más.
Está triste, triste pelas fotos: Istambul, Lisboa,Veneza, Grécia, Coimbra, Melides, Vila Nova de Mil Fontes,
Zambujeira do Mar, Porto Corvo, Sines, Tróia, Funchal, tudo perdido. O Universo
jogou duro, duríssimo, e ela vai seguir, tem de fazê-lo, contando apenas com a sua memória; bem
verdade que milhares de fotografias são
incapazes de competir com o cérebro de
cada um, é ele que, efetivamente, no lugar adequado, uardará, para sempre, para alguns, o efeito
visual e o associa ao efeito emocional experimentado em todos os momentos que foram
captados pelas fotos: sim isto é
verdade, e, talvez por isso mesmo é que, apesar de não poder comandar a
máquina, teve força suficiente para influenciar
no seu funcionamento, com a finalidade de proteger quem tem de ser
protegido, com a finalidade de fazer com que
a dona das fotos, que pensava,
inclusive, ser dona dos momentos, perceba o mal que faz a si própria, ao ver essas fotos, muita delas perenizadoras de dores e
sofrimentos que ela tem de afastar de
si, e que, o Universo lhe avisa: “começou por aí, perceba a mensagem, acorde.
Vá em frente, deixe este passado que você quer perenizar com fotos, para trás,
siga a sua vida sem estes registros que lhe fazem mal. Arranque de você estas
memórias, e sonhos que não se realizaram e nem se realizarão, porque o tempo passou e eles se foram com
ele. É um novo momento, siga sem essas lembranças amargas, que você insiste em
preservar para sofrer, se magoar e não crescer”.
Pensando assim, só lhe resta concordar com o Universo, que através de uma
máquina, usando a tecnologia, vem lhe
dar ensinamentos espirituais, lhe mostrando o que ela insiste em não ver, não porque seja burra ou não perceba, mas porque está
com medo de recomeçar, de jogar-se sem elos, sem reservas ao encontro da
felicidade, que está sendo adiada, apenas e tão somente porque quer reviver momentos que foram “estagnados”
e que por isso mesmo ficaram parados no tempo e no espaço, sem
movimento, sem modificações.
O computador lhe deu esta
lição.
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