sábado, 4 de janeiro de 2014

Perda de memória

Perdeu a memória, a prova da realização dos sonhos, metade da sua própria vida.  A tela negra do computador á sua frente lhe mostra isto. Pois é: a máquina, juntamente com o universo, conspirando contra si.
Apagou-se tudo, simplesmente, apagou-se tudo, os  últimos cinco anos da sua vida se foram num piscar de olhos. Assim mesmo, num piscar de olhos, pior que novela que em seis meses uma pessoa nasce, cresce,sofre, faz misérias com os outros e, em algumas delas, morre.
A tela, de repente, ficou preta. Ligou, desligou, ligou outra vez, nada, nem mesmo o som  peculiar da máquina  dando  partida, ou melhor, para ser  mais moderna,  “start”.  A máquina vinha dando sinais de que estava saturada de si, apesar da sua pouca idade, isto é, dela; desde os primeiros dias de convívio mostrou-se incompetente, mas ela, numa teimosia sem limites, foi adiando a separação; fez muitos “back up”, muitas cópias de arquivo, mas, nos últimos meses, imbecilmente, esqueceu-se da máquina, e ela, para  lhe mostrar o seu poder, simplesmente, apagou as suas lembranças  e um pouco da sua vida foi-se ali.
Bem verdade que a desgraçada não pode competir com a sua memória, pois, certamente,  pelo menos por algum tempo, ela não vai esquecer  do que aconteceu, mas, sexagenária como está, o dia em que a memória falhará não esta muito longe,e aí terá de maldizer a miserável da máquina. Como ela vai se  recordar  visualmente  dos momentos passados e registrados em fotos, em textos, em mensagens gravadas?. Como miserável? Pergunta olhando aquela tela  inútil. 
Pensa  na última viagem que fez, se bem que ela tem alguns momentos que deveriam ser apagados mesmo, não só da memória virtual, mas da sua própria memória, mas foram registradas em fotos muitas paisagens que,  talvez, pessoalmente, não volte a ver. Lembra de quantas fotos tirou do por do sol: nenhum  igual ao outro, no Bósforo, no Mediterrâneo, no  Atlântico. Nada, não poderá dividir mais com ninguém este fenômeno  maravilhoso que é o final do dia, que, quanto mais bonito, mais prenuncia um novo e belo dia de esperança. Mesquitas, Igrejas, oceanos, rios,  nada, não pode mais partilhar nada,  tudo foi apagado
Pensa outra vez: “ o Universo conspira contra mim, ou quem sabe a meu favor”. Será que isto não é um aviso de que ela tem mesmo de se desligar  de algo, que, no fundo no  fundo, embora ela não queira mesmo encarar a realidade, lhe está fazendo muito mal?  Será que a máquina, evidentemente mais racional e inteligente de que ela, quer lhe ajudar a retirar da sua vida,  aquilo que já devia ter saído há muito tempo? “Só pode ser isto”! Não há justificativas outras para uma pane tão miserável.
Perdeu mesmo tudo, é irrecuperável, mas, mesmo assim vai levar a máquina  para um técnico, embora saiba de  antemão a resposta: é irrecuperável, o hd, o não sei mais o que, não funciona mais, todos os arquivos foram apagados, não há recuperação.
Está irritada, afinal tinha coisas importantes ali, muitos arquivos pessoais, comprovantes de pagamentos, contos, histórias, romances começados, enfim, a sua vida,mas o que  mais lhe irrita mesmo são as fotos. Mesmo que retorne a todos os lugares  em que esteve, nada, nada mais será igual. O momento passou e  as coisas não voltam, e com elas o momento do lugar. A gente pensa que as coisas não mudam; não e verdade, elas mudam sim, mudam a todos os momentos, não percebemos isto se a mudança não nos afeta, seja emocionalmente, seja materialmente, mas elas estão em movimento sempre, e, portanto, se você consegue, como diria um vizinho,  “estagnar” o momento na fotografia, você o pereniza para sempre, exatamente como ele aconteceu. Lógico que  tudo fica estático, o que vai fazer o movimento da foto é a sua própria memória, mas a foto lhe traria esta recordação,  faria com que o seu pensamento retornasse à aquele momento e muitas, muitas lembranças seriam reavivadas, sejam elas boas ou más.
Está triste, triste pelas fotos: Istambul, Lisboa,Veneza, Grécia,  Coimbra, Melides, Vila Nova de Mil Fontes, Zambujeira do Mar, Porto Corvo, Sines, Tróia, Funchal, tudo perdido. O Universo jogou duro, duríssimo, e ela vai seguir, tem de fazê-lo, contando apenas com a sua memória; bem verdade que milhares de fotografias  são incapazes de competir com  o cérebro de cada um,  é ele que,  efetivamente, no lugar adequado, uardará, para sempre, para alguns, o efeito visual e o associa ao efeito emocional  experimentado em todos os momentos  que foram  captados pelas fotos:  sim isto é verdade, e, talvez por isso mesmo é que, apesar de não poder comandar a máquina, teve força suficiente para influenciar  no seu funcionamento, com a finalidade de proteger quem tem de ser protegido, com a finalidade de fazer com que  a dona das fotos, que pensava, inclusive, ser dona dos momentos, perceba o mal que faz a si própria, ao  ver essas fotos,   muita delas perenizadoras de dores e sofrimentos que ela tem de afastar  de si, e que, o Universo lhe  avisa:  “começou por aí, perceba a mensagem, acorde. Vá em frente, deixe este passado que você quer perenizar com fotos, para trás, siga a sua vida sem estes registros que lhe fazem mal. Arranque de você estas memórias, e sonhos que não se realizaram e nem se realizarão,  porque o tempo passou e eles se foram com ele. É um novo momento, siga sem essas lembranças amargas, que você insiste em preservar para  sofrer, se magoar e não crescer”.
Pensando assim, só lhe resta concordar com o Universo, que através de uma máquina, usando a tecnologia, vem lhe  dar ensinamentos espirituais, lhe mostrando o que  ela insiste em não ver, não porque  seja burra ou não perceba, mas porque está com medo de recomeçar, de jogar-se sem elos, sem reservas ao encontro da felicidade, que está sendo adiada, apenas e tão somente porque quer  reviver momentos que foram  “estagnados”  e que por isso mesmo ficaram parados no tempo e no espaço, sem movimento, sem modificações.

O  computador lhe deu esta lição.   

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