Estou na rede, olho as cores da
casa; verde, branco que predomina. O carro preto faz parte, agora, da paisagem,
tanto que os pássaros resolveram que ele é o sanitário público deles. Os
portões marrons contrastam com o branco do muro, o que realça o tom do marrom.
O coqueiro está cheio de cocos
que, possivelmente, não servirão para nada. Ele, triste na minha ausência,
pegou um fungo, vai levar tempo para se recuperar. A goiabeira cansou de
produzir, ninguém valorizou os seus frutos e ela, vingativa, resolveu ficar
“estéril”, pelos menos, temporariamente.
A palmeira não enche, mas tenho
esperanças, vejo mais quatro folhas em gestação. Hortelã, manjericão, alecrim,
tudo muito verdinho. As onze horas de diversas tonalidades: brancas rosas, amarelas
lindas estão alegres com o sol e demonstram esta alegria com o seu desabrochar.
As duas amigas com a sua cor inigualável. As rosas do deserto estão
despencando, são efêmeras, a primeira das sete flores caiu, tenho de esperar, e
espero que tenha mais floradas.
Ainda da rede, visualizo o carro,
a varanda, a lateral esquerda da casa; é lindo. Fico pensando o que vou fazer
se tiver de vender esta casa e for embora daqui.
Estou ouvindo Orlando Dias
“espera um pouco mais, a vida continua” e tantas outras que já tocaram. Num
paradoxo completo, tento ler “Ecce Homo” um resumo de Nietzsche por ele mesmo;
mas como sou louca isto pode ser uma grande combinação; se um dia conseguir
entender o segundo, mas vou tentando, pois quem sabe, bebendo muito vinho
chegue lá; afinal quero crer, contrariamente a ele, Nietzsche[1],
que “in vino veritas”. Não quero achar, como ele, que para “crer que o vinho dá
alegria seria preciso ser cristão, isto é, crer o que para mim constitui uma
obscuridade” (p.39). Quero crer, e muito em tudo, nesta beleza que a natureza
pode oferecer, pois está um dia lindo: o sol brilha muito, onde ele recai faz
com que as cores fiquem mais vivas, mais brilhantes. O céu está com um azul muito
intenso, não há nuvens, fico a vislumbra-lo pelo intervalo entre a minha casa e
a construção do meu vizinho, além disto, brega ou não, gosto de ouvir as
músicas que estão a tocar: agora é a “minha serenata”. Continuo na rede olhando
a minha vida passar com os seus tons: verde, branco, preto, lilás, grená,
rosa.
Coloco outro disco, ouço agora
Pablo Alborán, vou direito para a música que ele canta com Carminho: “PERDONAME”
- “ Se alguna vez me preguntas o por
que, no sabre decirte lá razón, no fuistes tu, porisso y mas, perdoname”. É,
inacreditavelmente, linda e vou escrevendo e continuando a entender, ou melhor,
tentar entender a loucura, ou a sanidade, de Nietzsche, confundindo-me com a
minha. Já não tenho certeza de que sou
“não louca”.
Volto a ouvir Orlando Dias “Tu
hás de sempre chorar a minha partida[...] tu hás de sentir em outros braços o
calor dos meus braços[...] tu hás de pensar em mim a todo momento, meu nome jamais sairá do teu
pensamento”.
Tento voltar ao livro, me
concentrar na leitura, é difícil, mas chego a um trecho que diz: “Ninguém é
livre de viver em qualquer parte; e quem tem de resolver grandes tarefas, que
exigem toda a sua força, tem mesmo aqui uma escolha muito limitada” (p.41) Ele
se refere ao espaço e a relação deste com o metabolismo da pessoa; a influência
do primeiro em relação ao segundo. Dou um salto da leitura, porque associo o lugar
ao “amor” e ouço “a minha vida é um tormento, eu não te esqueço amor um só
momento”. Sim, o espaço e a ausência realmente bolem com o meu metabolismo;
ambos podem fazer muito mal ao ser humano, e nem dá para administrar a tarefa,
sequer, alcançá-la.
Não paro por aí, continuo a
associar Nietzsche, pretensiosamente, como é óbvio, à minha própria vida, à
minha própria “história”, ao meu momento, e aí deparo-me com o seguinte
desabafo: “O grande poeta cria a partir da sua realidade, até ao ponto de,
subsequentemente, já não suportar a sua obra” (pg.46) e, logo adiante, falando
ele das peças de Shakespeare: “como deve ter sofrido um homem para assim ter
necessidade de ser bobo!” Compreender-se-á o
Hamlet? Não é a dúvida, mas a certeza que enlouquece”. (p 46).
Paro, fico pensando no impacto da
última frase. Sim, talvez, em alguns momentos, seja melhor a dúvida, a certeza
realmente enlouquece. O saber irreversível da certeza de algo, principalmente
quando se fala em amor, é muito cruel e pode endoidecer.
E quando se tem a certeza de que
não entendeu nada, de que tudo gerou apenas questionamentos e nada mais que
isto. O que fazer? O que o homem pode fazer diante das certezas que lhe são,
cruelmente, apontadas, apresentadas aos seus olhos, aos seus ouvidos, ao seu próprio
corpo. Nada! Quedar-se-á inerte? Reagirá? O que fará este pobre mortal? Vai procurar amoldar-se a outro espaço, e se,
como Nietzsche, for fraco de saúde? Morrerá com a certeza, ou com a dúvida de
que tudo foi uma certeza? Aconteceu, não
aconteceu? Foi mesmo assim? Tem solução?
Fico por aqui, sem certeza
alguma, nem de que fiz certo, nem de que fiz errado antes e nem agora, só sei
que, mesmo na incerteza, é preciso decidir, porque sempre estamos diante de
decisões, elas são imperativas, e é através delas que algumas das nossas “certezas”
se vão para dar lugar a outras, que felizmente, não são “perenes”.
Dezembro de 2012.
1]
NIETZSCHE, F. Ecce Homo, Como se vem a ser
o que se é, Lisboa, Edições 70, 2010. (trad. Artur Morão)
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