sexta-feira, 29 de julho de 2011

Dr.Cinquentinha

A primeira vez que fui para aquelas plagas, o fiz por dever profissional, até porque ir para aquela cidade do interior, no extremo sul da Bahia, por prazer era impossível: primeiro a distância, segundo a rima não muito rica do nome já deixa antever o que ela é mesmo, uma cidade feia, limitada com outras tantas cidades feias e violentas: Eunapólis, Teixeira de Freitas, e ainda muito próxima aos Estados de Espírito Santo e Minas Gerais, que despejam milhares de pessoas por este interior da Bahia, umas boas, outras muito más.
Bom, mas não comecei isto para falar da cidade e nem das suas fronteiras, nem mesmo, do povo. Estou fazendo o texto para falar de uma grande figura que conheci neste lugar tão esquisito, que faz a gente duvidar que abrigue uma pessoa como esta de quem estou a falar. Ela vive ali, curtindo e sendo feliz. Somente por isto já se vê que estou a falar de uma pessoa para lá de especial.

Inconfundível, diria eu, especialmente diferente, singular e plural ao mesmo tempo, singular pela sua própria inconfundibilidade, plural pela sua grande alma, que aceita a todos e tudo com uma naturalidade invejável.  

Não vê ele defeitos nas pessoas, esses são virtudes mal encaradas, motivo de muitas gozações, de muitos risos, mas de nenhuma crítica. As pessoas são aceitas como elas são, e elas chegam e saem da sua vida dessa maneira, embora todos os que conheci, e que não saíram da sua vida, apenas se afastaram, tenham por esta figura um grande e imenso carinho.

Mas, deixem-me dizer-lhes como conheci este “ser” especial: fui convocada para trabalhar na cidade da rima rica.  Estava acabando de assumir um cargo importante na minha terra, muito importante para muitos; para mim, uma profissão com um pouco mais de responsabilidade de que as demais, porque você trabalhava a vida dos outros, não como o faz o médico, mas de uma outra forma que pode deixar muitas marcas, pois você pode acabar com a vida de uma das partes envolvidas na relação, que também podem acabar com a sua.

Mas isto também não interessa! O fato é que fui trabalhar naquela cidade de muitas ladeiras e de hotéis com portas curtas, isto é; portas que não chegam até o chão, resultando que fica um vão entre a porta e o chão,  e às vezes, também, na parte de cima, o que dá para perceber o movimento do quarto e ouvir tudo o que se passa, seja no corredor, seja nos demais quartos, seja na recepção; enfim, participa-se de tudo, uma hospedaria mesmo, em que os hóspedes terminam ficando tão íntimos que, mesmo sem conhecer um ao outro, podem contar toda a vida de cada um a outrem. Imaginem que beleza!

A viagem de Salvador para a cidade da rima rica dura 12 horas, num belo ônibus leito, do qual um dia tive saudade quando, em 1990, fui pela primeira vez a Europa num avião mínimo, com espaços mínimos, que as minhas pernas chegaram praticamente dobradas, sem condição de esticar, afinal foram 12 horas de vôo. Ainda não tínhamos avião direito para Lisboa saindo daqui de Salvador, para irmos para o exterior tínhamos de pegar a conexão em Rio de Janeiro ou São Paulo, por isso tantas horas de vôo e esperas em aeroportos.

Cheguei cansada, como é obvio, às 07h00min da manhã e o trabalho começava as 08h30min, portanto, só foi o tempo de me instalar no meu quarto conjugado com os demais hóspedes e ir para o trabalho. Estava ansiosa por um motivo, eu ia fazer uma série de audiências de impedimento, porque o advogado era filho da Juíza titular, ou seja; eu ia passar um dia quase todo fazendo audiências com um só advogado de um dos lados da mesa, prenúncio de um dia chato, com muitos aborrecimentos. Deixem-me dizer que não só o rapaz era parente da Juíza, como, também, a diretora de secretaria o era. Uma família que trabalhava unida... Pois é eu peguei, de cara, este abacaxi. Para rimar com a cidade deveria dizer “abacaxu”. 

Dentre as inúmeras audiências da pauta havia algumas contra a Prefeitura local e contra o Banco do Estado da Bahia, que ainda existia. Não gostava de fazer audiências de bancos, nunca gostei, os advogados só faltam se matar, um para tirar do banco e o outro para não permitir que se tire: horas extras intrabalhadas em muitas ocasiões, muitas vezes comprovadas por inúmeras testemunhas sem qualquer ética, moralidade, dignidade, cidadania, pois mentiam escancaradamente sem que a pobre julgadora pudesse, ao menos, declarar esta falta de verdade.

Em Salvador, quando disse a alguns colegas que ia para aquela cidade, todos, sem exceção, me falaram do “Cinquentinha”, era este o seu apelido dentro da comunidade forense, isto porque qualquer proposta de acordo, fosse o processo de grande, ou de pequeno valor, a proposta era a mesma, “pago cinquentinha”. Achei engraçado, embora considerando uma falta de respeito para com o próprio magistrado, porque entendia a proposta, se o valor da causa fosse grande, um deboche, aliás, continuo achando. Ninguém me disse como ele era, quem era, só me deram esta dica.

Comecei as audiências e, logo de início, havia uma em que a reclamada era a Prefeitura local. Respondendo ao pregão entram as partes acompanhadas dos seus respectivos patronos; e aí me vem a figura: cabelos encaracolados de um castanho bem claro, uma cara sorridente, um rosto peculiar, um corpo pequeno e com um desvio para um dos lados, que embora de direita, seguia, relativamente, uma esquerda, acredito que um pouco festiva, pois, muito burguesa, ligada a muitos luxos e sabores, que não posso acreditar que esta tendência pudesse ou possa, um dia, vir a ser radical. Viajar para Cuba ou para a Rússia não faz de ninguém um grande  socialista, ou comunista, ou ainda,  um seguidor do marxismo, enfim, mas isto não vem ao caso.

A audiência começa e eu pergunto: Há alguma possibilidade de acordo? Há sim doutora, responde aquela figura com uma voz “colossal”, nada condizente com a sua aparência, quero dizer, a gente espera uma voz menos postada, menos grossa: “cinquentinha”.  Apesar de achar mesmo a proposta debochada, não pude deixar de rir, porque naquele momento fui oficialmente apresentada ao Dr. “Cinquentinha”, o amigo de todos, um homem feliz, com muitas estórias e muito carinho e atenção pelos nossos pares, de quem se fez amigo de tantos quantos por lá passaram.

Fiz audiência até tarde, muitas mesmo, e, por isso mesmo, não tive condição de sair para almoçar, ou seja; quando sai da sala da audiência, lá pelas quatro horas da tarde, não havia mais lugar para comer, resultado, comi frutas e pão com queijo e pronto.

Estava cansada e fui para o hotel fazer as decisões, muitos processos de banco conclusos, uma “merda” colossal, mas que jeito! Quem tá na chuva tem de se molhar, e eu me molhei muito, pela grande responsabilidade que tive em todo o tempo em que exerci a profissão que “escolhi”; escolha feita por necessidade, ou não, mas escolha.

No dia seguinte, já familiarizada com o “Cinquentinha”, já não estranhei as propostas de acordo, embora tivesse lhe dito que aquilo era uma brincadeira, e ele me convidou para almoçar na casa dele. Em principio disse não, até porque achava mesmo um inconveniente fazer isto, por todos os motivos possíveis, inclusive o de ir para a casa de um advogado militante, aquilo não ia soar bem, embora uma boa parte dos colegas que por ali passaram me dissesse que o melhor mesmo era ser amigo do doutor e comer na casa dele, porque a “Mariquinha” era uma cozinheira de mão cheia, e eu não ia encontrar um lugar melhor para almoçar; depois eu nunca sabia o horário que a audiência terminaria, portanto, não poderia acertar almoço na casa de pessoa alguma. Quanto ao segundo motivo isto foi resolvido pelo próprio “Cinquentinha, que me disse que a hora que eu saísse da audiência poderia ir  almoçar, porque a Mariquinha estava a me esperar, sem qualquer problema.

Não tive muita saída e fui almoçar na casa do “Dr. Cinquentinha”, agradeço imenso a gentileza repetida em muitas oportunidades. Mariquinha realmente era uma grande cozinheira, aliada a isto estava a grande qualidade de ser uma espécie de gerente da casa do doutor; ela cuidava de tudo acompanhada dos seus ajudantes de ordens; os dois filhos dela. Quando a conheci  era apenas uma, que tinha o apelido de deputada, o outro, que era homem e nasceu bem depois, certamente, era o deputado, quiçá senador; vereador é que não seria: o cargo não tem élan para que o seu portador freqüente a casa.

Quando conheci o “Dr. Cinquentinha” ele estava descasado, acho eu, tinha a recém separado da mãe de sua filha; ele estava sozinho, mas nem tanto assim, porque tinha “as mineirinhas boas demais” que sempre estavam dispostas a lhe fazer companhia, além disto tinha ali a sua família, todos bem posicionados. Eram de lá e lá se estabeleceram, embora a família tenha esticado os braços alcançando o Rio de Janeiro, onde o próprio Dr. estudou e Minas Gerais, onde uma de suas irmãs morava lou ainda mora. Todos pareciam muito felizes e grandes “viventes”, andavam de bem com a vida, gozadores naturais dela e dos outros. Muitos sobrinhos triplicaram o clã, um deles, que bem me lembro, trabalhou comigo; um outro, conhecido por “nariz de cera”, era muito ligado ao tio, e eu morria de rir ao conferir porque era assim chamado, é que o nariz era bem grande.

Foi na casa do “Cinquentinha” que comi, pela primeira vez, “javali”,  acho eu que foi esteo bicho, preparado a duas mãos; a dele e a da Mariquinha; ele, claro, o “gourmet” fazia o tempero com vinho, etc., e ela é que ficava responsável pelo “assar” o bicho, que tinha de ir para o forno com a” vinha d´alho” e pelo tempo proporcional à quantidade de quilos da carne. Já não me lembro a proporção, mas sei que assim era.

Comi muitas e diferentes comidas na casa do "Cinquentinha", temperadas ou não por ele, mas sempre com a participação providencial da Mariquinhas. Lembro-me de uma lagosta à “não sei quem”, parece-me que a "fidel castro",  que, diziam ser uma maravilha, eu não comia porque nao gosto da bicha. Degustei queijos, bebi bons vinhos, com a musica ambiente escolhida pelo Dr. que, diga-se de passagem, tem excelente bom gosto. Não admira as tantas namoradas que conheci, seja grande, seja pequena, mineirinha ou não, todas pareciam apaixonadas pelo galã, que sabia realmente agradar uma mulher.

Foi com ele, e por ele, que conheci muitos lugares no extremo sul da Bahia: Prado, Canavieirasou Caravelas, já não lembro, Cumuruxatiba, carinhosamente chamada pelo clã de “cumuru”, Carnaíva. Estive inúmeras vezes em Porto Seguro, imagine que até conheci Teixeira de Freitas, não sei bem para que e nem o motivo, mas sei que lá estive em companhia do Dr., com  o qual o pior lugar ficava bonito, contagiado com a sua alegria, a sua risada, a sua vontade de viver e de ser feliz. Com ele a gente vê a beleza onde ela, em princípio, não existe.

Cumuru, entretanto, de todos os lugares que estive, foi o especial, estive lá várias vezes: fui com filhos, com amigos, com o companheiro, com irmãos, aquele é um lugar abençoado, até porque, tem o Dr. Cinquentinho como filho natural. A família domina o pedaço e é muito bom ver todos eles reunidos, mesmo quando isto contrariava uma rainha com a qual ele conviveu por certo tempo e com quem, também, teve um filho.

Tive grandes momentos na companhaia do “Cinquentinha”, estive em uma das mais belas comemorações do seu aniversário, que é um evento seja em Cumuru, seja onde ele resolve festejar. Tenho muitas saudades, e vou fazer força para, este ano, no dia 06 de setembro, estar onde ele estiver para comemorar e agradecer os bons e grandes momentos que compartilhamos, nós e as nossas famílias.

Continuo tendo noticias do “Cinquentinha”, que agora toca piano, comprou um para a sua casa, e tem um tocador particular para um “happy hour”. Podre de chic! Agora tive o prazer de descobrir que ele é um seguidor do blog, pelo que agradeço, registrando, entretanto, que o começo deste texto já estava no prelo quando descobri mais um seguidor, e que para minha surpresa era ele.

Obrigada amigo, agradeço cada minuto de prazer que proporcionou a mim e aos meus, bem como a sua admiração, o seu respeito para comigo. Continue feliz distribuindo simpatia e conquistando amigos, com o seu riso franco, aberto; com o seu riso contínuo que parece não querer parar, certamente para contagiar quem esteja do seu lado e que, por mais triste que venha a estar, possa sorrir também. Um grande abraço e obrigada por me permitir conhecê-lo.  

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