Quando eu tinha sete anos minha família foi morar em Camaçari. Deixamos, às pressas, quase fugindo, a nossa casa da Imperatriz, na qual o meu pai também tinha o seu negócio – um armazém bem sortido com os mais diversos produtos. Uma espécie de supermercado embora sem a arrumação física que hoje eles apresentam. Evidentemente que era um pequeno comércio de bairro, que tinha um enorme nome verde e amarelo – BRASIL- era este o nome do estabelecimento, que até bem pouco tempo existia no mesmo local. Acho que o Brasil, à época, não queria liames com a Espanha, e resolveu expulsar o “Espanha” do seu espaço.
Mas não quero falar da Rua da Imperatriz e nem do Armazém Brasil, de onde saímos, como já disse, quase que fugidos, com a minha mãe pegando o que podia do estoque ainda existente.
Minha mãe, uma mulher de coragem, que nenhum dos seus filhos herdou, tomou dinheiro emprestado a um tio galego "rico”, dando as suas preciosas jóias como garantia, e comprou a casa de Camaçari.
Tínhamos uma casa verdadeiramente maravilhosa, espaçosa, ventilada, com um enorme quintal, onde cultivávamos várias frutíferas, que nos salvaram da fome em muitas oportunidades. Tínhamos espaço para criar porcos, galinhas, patos. Só não colocamos uma vaca lá dentro porque nunca tivemos dinheiro para comprá-la, do contrário, ela também faria parte da nossa família e do nosso sustento.
O fato é que para sobrevivermos em Camaçari dependíamos: das aulas que minha mãe dava a uma porção de meninos das redondezas; da venda de guloseimas e artigos de armarinho que a minha mãe montou na nossa sala de visitas; das nossas frutíferas e dos nossos bichos, que eram criados e procriavam para serem comidos. Lembro-me perfeitamente das galinhas que quase nunca chocavam todos os seus ovos, porque eles serviam para a nossa alimentação. Só uma parte deles ficava para a próxima leva de pintos, o suficiente para garantir a sobrevivência nossa e do próprio galinheiro.
Não tínhamos água encanda, e tínhamos, todos os dias, de encher o tonel que reservava a água para o gasto diário. Economizávamos água quanto podíamos. O banho era, para os menores, na mesma água. Os maiores utilizavam a água dos menores para se ensaboar e uns dois canecos para o enxágüe, toda a água do banho, que era tomado dentro de uma bacia grande, ficava reservada para o sanitário.
Minha irmã mais velha estava interna em Salvador e, portanto, a colaboradora número um de minha mãe era eu, depois vinha meu irmão do meio, que quando não fugia para as suas travessuras de menino, ajudava nas tarefas. Eu tinha muitas, mas muitas obrigações mesmo; tinha uma responsabilidade imensa na organização e funcionamento da minha casa, acho que era porque minha mãe quis me dar o nome de “Amélia” mulher de verdade, foi-se o nome, mas ficou o estigma. Nessa época eu não estudava, porque minha mãe queria me colocar interna em um colégio bom e, portanto, preferiu que eu não fosse para o Grupo Escolar de Camaçari.
Minha rotina era: acordar e, de imediato, forrar minha cama e pegar a lata de água para ir à fonte e trazer tantos baldes quantos fossem necessários para encher o nosso reservatório. Como economizávamos muito a água, ele sempre estava pelo meio. O pior dia para a execução desta tarefa era quando minha mãe resolvia limpar este reservatório, porque ele tinha de ficar completamente vazio para ser lavado e ser cheio de água nova. Nesses dias eu passava o dia inteiro entre o tonel no nosso quintal, e a fonte que ficava no fundo do nosso terreno, mas fora da sua cerca. Muitas vezes tive de ser ajudada nessa tarefa.
Depois que acabava de encher o tonel, o que se dava lá para as 10 horas, comia alguma fruta, ou qualquer pedaço de pão velho que tivesse em casa, porque não tínhamos pão todos os dias, o dinheiro não dava, eu ia varrer e tirar o pó da casa. Fazia isto, religiosamente, em todos os dias, à exceção de quando ia lavar roupa no rio na companhia das minhas vizinhas, o que eu adorava fazer, porque neste dia eu tinha comida garantida. Elas sempre levavam o feijão já misturado na farinha para o almoço, que eram mesmo uma maravilha, uma espécie de feijão tropeiro. Eu lavava a roupa grande da casa, os lençóis e as toalhas, trabalho do qual nunca me queixei, exatamente por isto, porque além de comer bem, ainda me divertia muito tomando banho de rio, pois ficávamos lá até que a roupa secasse, e, enquanto esperávamos, ficávamos ali naquela água maravilhosa e transparente do rio. A roupa ficava branquinha e cheirosa, porque era “corada”, (estendida no coradouro) penso que é assim que se diz e escreve, enxaguada e colocada para secar em cima dos pequenos arbustos, que com os seus aromas, aromatizavam as nossas roupas.
Também deixava de limpar a casa quando tinha de ir para a casa de farinha do Sr. Baninho, ajudar a fazer a farinha. Todos os meses eu tinha este compromisso. Tinha de ajudar a descascar e ralar a mandioca e passá-la na peneira. O único serviço que não fazia, dado que ainda era muito pequena, era o de torrar a farinha naqueles imensos fornos a lenha. Meus braços não agüentavam o rodo que você tem de movimentar para misturar a farinha no forno de cimento e não deixar que ela pegue e nem queime e fique uniforme e estaladiça. Era uma coisa que também gostava de fazer, embora ficasse muito, mas muito cansativo mesmo, mas eu tinha de levar o meu pagamento, que era, dependendo da quantidade de farinha que fosse feita, uns cinco quilos, farinha que ajudou a engordar um outro meu irmão, que vivia pendurado na minha cintura, com as pernas enganchadas em volta do meu corpo. Não sei como não fiquei com um desvio na coluna, porque “farinha” pesa.
Tinha todas estas obrigações nos dias de semana, que eram completadas com as do final de semana: levar para a feira as frutas que podia para vender (abacates, limões, mangas, laranjas, cajus). Eu e meu irmão do meio fizemos isto muitas vezes, umas com a minha mãe, e outras vezes levada pelas vizinhas, o que não me dispensava de fazer a faxina total da casa quando retornasse e, caso não tivesse água suficiente, encher o tonel.
Tinha uma tarefa que me deixava extremamente cansada e que eu fazia com toda a má vontade do mundo, que era lavar as fraldas dos meus irmãos menores, mas aí eu já estava maior; minha mãe resolveu parir mais dois em Camaçari, no pequeno intervalo de um ano. Aquilo realmente me injuriava, mas não tinha alternativa. Levava a bacia com as fraldas para o fundo do quintal e ia buscar água na fonte até encher duas bacias, a que servia para ensaboar e a que servia para enxaguar.
Outra tarefa cansativa era limpar o “terreiro”, que minha mãe fazia questão que estivesse sempre limpo, como se a limpeza pudesse afastar a pobreza da nossa vida. A casa estava sempre arrumada, nada fora do lugar, acho que por isso peguei a mania “das limpezas” que me valeu, mais tarde, o apelido de “Maria espanador”.
Não sei bem como ainda da tinha tempo de brincar de amarelinhas, de gude com os meninos, e de ouvir estórias, inclusive a de um menino que tinha algum problema mental e que diziam que, em noite de lua, ele virava “lobisomem”, eu tinha um medo da porra, e, realmente noite de lua cheia não saia de dentro de casa de maneira alguma. Também tinha a estória da “mulher cavalo”, que ficou assim porque, segundo a lenda, tinha xingado a mãe de “cavala” e esta lhe disse: “cavala tu és de virar”. Ainda bem que nunca chamei minha mãe da “cavala”, e quando, na raiva, pensei em outros nomes para ela, ela não ouviu, até porque se ouvisse, não iria me jogar praga: fazia como sempre fez, quando eu caia na bobagem de desobedecer ou fazer qualquer errada; me batia, ou melhor, me espancava. Não sei se hoje ela não seria denunciada por maus tratos. Eu apanhava, aliás, apanhei muito, de palmatória, de cipó caboclo, de cinturão. Tive a cabeça partida por lata de óleo, por pratos, e por qualquer coisa que minha mãe tivesse na mão na hora do problema. Eu e meu irmão do meio, fomos caixa de porrada de minha mãe, que descarregava em nós todas as frustrações e revolta pelo que a vida lhe fez, pelo destino que lhe reservou, pela mudança radical da sua estória.
Já lhes falei do serviço de alto falante, que ficava instalado no poste da porta da minha casa, que ficava numa encruzilhada. Do outro lado da rua, lado esquerdo, estava o armazém do seu João, que tinha muitos filhos, um deles de nome Roque, que, quando ia lá para casa, à noite, quando sentávamos na porta para ouvir as estórias que minha mãe ou outras pessoas contavam, me olhava de uma maneira muito especial. Graças a Deus que não deu em nada, porque hoje Camaçari não é mais a Camaçari daqueles tempos idos; a Lama Preta, o bairro onde minha casa ficava, se perdeu na preta lama, e, certamente, como vocês podem bem observar, não nasci para viver na lama, tampouco em uma encruzilhada, que só era “do bem”, enquanto nós, eu e a minha família, despejávamos, com todas as dificuldades, amor e solidariedade, porque com todos os problemas que minha mãe passou, ela foi um anjo da guarda de muita gente, porquanto com os seus conhecimentos, que não sei bem como adquiriu, tirou do analfabetismo muito gente, por ser uma educadora nata; trouxe ao mundo tantos outros, pois se dizia parteira; tratou de ferimentos, porque tinha aptidões de enfermeiraa,alegrava crianças, porque vendia guloseimas,e ainda vestia pessoas, pois quando o tempo lhe sobrava ainda costurava. A “Gringa”, apelido que lhe deram, era mesmo virada na porra.
Pois é, agora vocês sabem alguns dos motivos que me levaram a ser esta "preciosidade"!
Pois é, agora vocês sabem alguns dos motivos que me levaram a ser esta "preciosidade"!
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