Parece brincadeira; uma semana após publicar o texto falando sobre a ausência e a
possível morte definitiva do Senhor Garcia,
estou sozinha aqui em casa e ouço
algumas batidas fortes na porta; me aborreço porque a porra da porta tem campainha,
e não posso entender por que não a acionam ao invés de bater na porta naquela violência.
Saio da sala apressada para ver
quem era. Abro a porta tão violentamente quanto as batidas que lhe deram.Acreditem: ninguém, nadica de nada, nem um pé
de gente, nem um carro, nem cavalo.
Cavalo! Já sei, disse para mim mesmo, é o Senhor Garcia,
entretanto, logo o pensamento passa, porque ele não se daria ao luxo de bater na
porta, apenas entraria e pronto.
Volto irritada para dentro, e o
susto foi grande. Estavam sentados no
sofá: o Senhor Garcia, um outro senhor, que
identifiquei como sendo o núncio do outro dia, e um menino feio como todos os
meninos feios que existem.
O Senhor Garcia deu a maior
gargalhada quando viu a minha reação. Eu estava mesmo apavorada, então o
desgraçado estava ali se sentando com mais duas pessoas e eu não vira passar
por mim. Desta vez não tive qualquer reação física. Todas as vezes que o senhor Garcia
aparecia eu ficava arrepiada, trêmula, na verdade: com medo, mas, desta vez, eu
não sentira nada e ele estava ali, sentadinho. Só me assustei bastante.
- Por que não fostes ao hospital[1]
como pedi?
- Senhor Garcia, o senhor não
iria entender o motivo, mas não foi possível sair daqui: a viagem, como o senhor
sabe, é longa, eu não tenho cavalo, etc. Parei de falar, porque me dei conta que
estava falando e justificando como se estivesse no tempo dele. Disse para mim mesmo: “estás ficando maluca mulher,
tu nem andas a cavalo kkkkkkkk!”
- Não sabes o esforço que estou a
fazer para estar aqui. Sinto que estou a morrer e preciso ter forças para
modificar o testamento que fiz anteriormente beneficiando aos padres do São Bento, eles não me deixaram
em paz, tive de sair da minha casa e ir
para o hospital[2]
para ver se eles me deixavam mais tranquilo, mas, agora tenho de refazer o
testamento e, como quero deixar-te algo, precisas dar-me o teu nome completo, e outras informações que possam identificar-te com
facilidade.
Trouxe o meu amigo para
testemunhar isto. Este menino é meu Este é meu neto, Francisco, ele é que será o herdeiro
de tudo o quanto construí, este filho da mãe, feio como todos os feios, que
parece ter sido cagado ao invés de parido, mas não tenho outro herdeiro,
portanto, ele é que, de mão beijada, vai receber tudo, entretanto, quero dar-te
algo.
-Oh seu Garcia deixa isto de lado!
Não vos preocupeis com isto.
- Todavia eu quero, portanto....
Neste exato momento me transportei
para Lisboa, e me vi questionando o “portanto” dos portugueses. Eles falam,
falam falam, e no final dizem: portanto, e eu fico a esperar a complementação,
que nunca vem. O portanto, pois, é justificado antes, eu digo tudo o que quero
e depois falo, portanto, kkkkk, é uma maneira bem engraçada de finalizar uma
oratória., todavia, eu achava que isto era uma coisa mais moderna, e vem ali
o senhor Garcia a me dizer exatamente a
palavra ”portanto”, mas com uma finalização mesmo: vais ser
minha “herdeira”, porque quero,
portanto.... (ou seja) não há mais questionamentos e pronto, é o que quero.
Fiquei imaginando o que o senhor
Garcia poderia deixar para mim.
Quase lendo o meu pensamento, ele
disse-me:
- Deixar-te-ei este local em que
vives.
Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
. Como é que é Senhor Garcia, vai deixar-me a minha própria casa?
- Sim, para que não venhas a ter
problemas. Construístes ilegalmente nas minhas terras, todos sabem que estas terras
são minhas, e para que os demais herdeiros não te possam tirar-te daqui, vou
deixar-te estas terras
Eu não conseguia parar de rir
mesmo, então vou ter direito ao que já é meu. Puta merda, o homem era doido
mesmo, e eu mais de que ele que ainda lhe dava ouvidos.
-Senhor Garcia o que significa
estas terras, além desta casa?
- Tudo, de Arembepe até a margem direita
do Jacuípe.
Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk,
realmente não pude conter o riso. Pensei nos Figueredo, donos de muitas terras
em Arembepe, nas minhas vizinhas laterais, Solange e Eliana, nos vizinhos do
fundo, nos da frente, no Mar Aberto, em Colo, em Vu, em Duinha, Chris:. Kkkkk, tudo meu. Eu iria
despejar todos das minhas terras. A
aldeia dos hippies, hoje tombada, enfim tudo em Arembepe agora, por vontade do
Senhor Garcia, era meu. Eu que tive tanto trabalho para conseguir escriturar
minha casa. Hilário mesmo!
Então vi que
o Senhor Garcia começou a ficar muito vermelho e muito aborrecido com a minha
risada, e sem mais delongas levantou-se e saiu, deixando-me, mais uma vez,
abruptamente e com a certeza de que ele não voltaria mais nunca. Ele ia morrer
mesmo de uma vez e pronto, e eu ficaria sem as novidades, ou melhor, eu já não
poderia conversar com ele, agora na minha vez de contar-lhe os acontecimentos “post
mortem”.
BIBLIOGRAFIA
CALMON, Pedro. História da Casa da Torre. Uma Dinastia de
Pioneiros. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 3ª. Ed. 1983
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto, O
Feudo – A Casa da Torre de Garcia D’Ávila, da Conquista dos Sertões à
Independência do Brasil. RJ, 19ª ed 2000 (recurso
eletrônico) acesso em 25.10,2019
RUSSEL -WOOD, A.J.R, Fidalgos
e Filantropos. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Trad. Sergio Duarte, Brasília, Editora Universidade
de Brasília, 1981
[1][1]
A Santa Casa de Misericórdia foi fundada em Lisboa em 1498 e a “filial da Bahia
era a mais importante do Brasil colonial (....)
A irmandade. Recrutava os seus membros dentre cidadãos eloquentes,
fossem os aristocratas da terra, comerciantes ou artesãos proeminentes. RUSSEL-WOOD
(1981:XIV-XV). A Casa de Misericórdia de
Lisboa em 1516 editou o Compromisso de Lisboa finalidades, espirituais e
corporais, dentre os corporais estavam: resgatar cativos e visitar prisioneiros:
tratar dos doentes; vestir os nus; alimentar famintos, dar de beber aos
sedentos; abrigar os viajantes e pobres;
sepultar os mortos.(RUSSEL WOOD, 1981: 14-15). Obviamente o Senhor
Garcia era membro da Santa Casa de Misericórdia, por seu um homem bom da
cidade, rico, grande proprietário e poderia estar, como esteve internado na
Instituição onde faleceu.
[2]
Segundo os autores que escreveram sobre Garcia D’Ávila, a exemplo de Pedro
Calmon, Bandeira, dentre outros, Garcia D`Ávila foi tão incomodado pelos padres
do São Bento, que para se livrar deste assédio foi para a Santa Casa de
Misericórdia. “Envelhecera o grande lidador. Roçava os noventa anos, quando,
importunado pelos frades bentos que queriam lhes deixasse parte dos bens, fugiu
para a hospedaria do hospital da Misericórdia, e aí, a 18 de maio de 1609,
ditou o testamento a Francisco de Oliveira, servindo de testemunhas o
desembargador Baltazar Ferraz, o licenciado Gonçalo Homem de Almeida, irmão do
lente de Coimbra, o cristão novo Antônio Homem, queimado pela Inquisição em
1624, o tabelião, ancestral( quem isso imaginaria na primeira década do século
XVII!). da Casa que ombreará, em ambição e poder, com a Casa da Torre” (1983:34).
“Os
monges que receberam de Catarina Álvares a doação da ermida de Nossa Senhora da
Graça, bem como de uma vasta área ao redor e eram grandes proprietários de
grandes extensões de terra na zona do rio Jaguaribe, nas imediações de Santo
Amaro de Ipitanga e Itapoá, passaram, entretanto, a submeter Garcia D’Ávila já
bastante enfermo nos últimos anos de sua vida, a crescente pressões a fim de
força-lo a fazer mais doações ao
Mosteiro de São Bento (...) E o cerco dos beneditinos chegou a tal ponto que o
poderoso Garcia D’Ávila, sentindo-se por eles coagido e impedido de dispor
livremente dos seus bens, teve de ir “fugindo” de casa para o hospital da Santa Casa de Misericórdia, a
fim de que pudesse agir conforme sua consciência mandava. A indignação contra
tal procedimento ele não escondeu. Manifestou-a, reiteradas vezes, ao ditar em
18 de maio de 1609 seu testamento(...) (2000:96-197)
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