sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A herdeira de Garcia D'Ávila



Parece brincadeira; uma semana após  publicar o texto falando sobre a ausência e a possível morte definitiva do Senhor Garcia,  estou sozinha aqui em casa e  ouço algumas batidas fortes na porta; me aborreço porque a porra da porta tem campainha, e não posso entender  por que não  a acionam ao invés de bater na porta naquela violência.
Saio da sala apressada para ver quem era. Abro a porta tão violentamente quanto as batidas que lhe deram.Acreditem: ninguém, nadica de nada, nem um pé de gente, nem um carro, nem cavalo.
Cavalo! Já sei, disse para mim mesmo,  é o Senhor Garcia, entretanto, logo o pensamento passa, porque ele não se daria ao luxo de bater na porta, apenas entraria e pronto.
Volto irritada para dentro, e o susto foi grande.  Estavam sentados no sofá:  o Senhor Garcia, um outro senhor, que identifiquei como sendo o núncio do outro dia, e um menino feio como todos os meninos feios que existem.
O Senhor Garcia deu a maior gargalhada quando viu a minha reação. Eu estava mesmo apavorada, então o desgraçado estava ali se sentando com mais duas pessoas e eu não vira passar por mim. Desta vez não tive qualquer reação física. Todas as vezes que o senhor Garcia aparecia eu ficava arrepiada, trêmula, na verdade: com medo, mas, desta vez, eu não sentira nada e ele estava ali, sentadinho. Só me assustei bastante.
- Por que não fostes ao hospital[1] como pedi?
- Senhor Garcia, o senhor não iria entender o motivo, mas não foi possível sair daqui:  a viagem, como o senhor sabe, é longa, eu não tenho cavalo, etc. Parei de falar, porque me dei conta que estava falando e justificando como se estivesse no tempo dele. Disse para mim mesmo: “estás ficando maluca mulher, tu nem andas a cavalo kkkkkkkk!”
- Não sabes o esforço que estou a fazer para estar aqui. Sinto que estou a morrer e preciso ter forças para modificar o testamento que fiz anteriormente  beneficiando  aos padres do São Bento, eles não me deixaram em paz, tive de sair da minha  casa e ir para o hospital[2] para ver se eles me deixavam mais tranquilo, mas,  agora tenho de refazer o testamento  e,  como quero deixar-te algo, precisas dar-me o teu nome completo, e outras informações que possam identificar-te com facilidade. 
Trouxe o meu amigo para testemunhar isto. Este menino é meu Este é meu neto, Francisco, ele é que será o herdeiro de tudo o quanto construí, este filho da mãe, feio como todos os feios, que parece ter sido cagado ao invés de parido, mas não tenho outro herdeiro, portanto, ele é que, de mão beijada, vai receber tudo, entretanto, quero dar-te algo.
-Oh seu Garcia deixa isto de lado! Não vos preocupeis com isto.
- Todavia eu quero, portanto....
Neste exato momento me transportei para Lisboa, e me vi questionando o “portanto” dos portugueses. Eles falam, falam falam, e no final dizem: portanto, e eu fico a esperar a complementação, que nunca vem. O portanto, pois, é justificado antes, eu digo tudo o que quero e depois falo, portanto, kkkkk, é uma maneira bem engraçada de finalizar uma oratória., todavia, eu achava que isto era uma coisa mais moderna, e vem ali o senhor Garcia a me dizer exatamente a  palavra ”portanto”, mas com uma finalização mesmo:  vais ser  minha “herdeira”,  porque quero, portanto.... (ou seja) não há mais questionamentos e pronto, é o que quero.
Fiquei imaginando o que o senhor Garcia poderia deixar para mim.
Quase lendo o meu pensamento, ele disse-me:
- Deixar-te-ei este local em que vives.
Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk . Como é que é Senhor Garcia, vai deixar-me a minha própria casa?
- Sim, para que não venhas a ter problemas. Construístes ilegalmente nas minhas terras, todos sabem que estas terras são minhas, e para que os demais herdeiros não te possam tirar-te daqui, vou deixar-te estas terras
Eu não conseguia parar de rir mesmo, então vou ter direito ao que já é meu. Puta merda, o homem era doido mesmo, e eu mais de que ele que ainda lhe dava ouvidos.
-Senhor Garcia o que significa estas terras, além desta casa?
- Tudo, de Arembepe até a margem direita do Jacuípe.
Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk, realmente não pude conter o riso. Pensei nos Figueredo, donos de muitas terras em Arembepe, nas minhas vizinhas laterais, Solange e Eliana, nos vizinhos do fundo, nos da frente, no Mar Aberto, em Colo, em Vu, em Duinha, Chris:. Kkkkk, tudo meu. Eu iria despejar todos das minhas terras.  A aldeia dos hippies, hoje tombada, enfim tudo em Arembepe agora, por vontade do Senhor Garcia, era meu. Eu que tive tanto trabalho para conseguir escriturar minha casa. Hilário mesmo!
Então   vi que o Senhor Garcia começou a ficar muito vermelho e muito aborrecido com a minha risada, e sem mais delongas levantou-se e saiu, deixando-me, mais uma vez, abruptamente e com a certeza de que ele não voltaria mais nunca. Ele ia morrer mesmo de uma vez e pronto, e eu ficaria sem as novidades, ou melhor, eu já não poderia conversar com ele, agora na minha vez de contar-lhe os acontecimentos “post mortem”.

BIBLIOGRAFIA
CALMON, Pedro.  História da Casa da Torre. Uma Dinastia de Pioneiros. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 3ª. Ed. 1983
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto, O Feudo – A Casa da Torre de Garcia D’Ávila, da Conquista dos Sertões à Independência do Brasil.  RJ, 19ª ed   2000 (recurso eletrônico) acesso em 25.10,2019
RUSSEL -WOOD, A.J.R, Fidalgos e Filantropos. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Trad.  Sergio Duarte, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981  



[1][1] A Santa Casa de Misericórdia foi fundada em Lisboa em 1498 e a “filial da Bahia era a mais importante do Brasil colonial (....)  A irmandade. Recrutava os seus membros dentre cidadãos eloquentes, fossem os aristocratas da terra, comerciantes ou artesãos proeminentes. RUSSEL-WOOD (1981:XIV-XV).  A Casa de Misericórdia de Lisboa em 1516 editou o Compromisso de Lisboa finalidades, espirituais e corporais, dentre os corporais estavam: resgatar cativos e visitar prisioneiros: tratar dos doentes; vestir os nus; alimentar famintos, dar de beber aos sedentos; abrigar os viajantes e pobres;  sepultar os mortos.(RUSSEL WOOD, 1981: 14-15). Obviamente o Senhor Garcia era membro da Santa Casa de Misericórdia, por seu um homem bom da cidade, rico, grande proprietário e poderia estar, como esteve internado na Instituição onde faleceu.   
[2] Segundo os autores que escreveram sobre Garcia D’Ávila, a exemplo de Pedro Calmon, Bandeira, dentre outros, Garcia D`Ávila foi tão incomodado pelos padres do São Bento, que para se livrar deste assédio foi para a Santa Casa de Misericórdia. “Envelhecera o grande lidador. Roçava os noventa anos, quando, importunado pelos frades bentos que queriam lhes deixasse parte dos bens, fugiu para a hospedaria do hospital da Misericórdia, e aí, a 18 de maio de 1609, ditou o testamento a Francisco de Oliveira, servindo de testemunhas o desembargador Baltazar Ferraz, o licenciado Gonçalo Homem de Almeida, irmão do lente de Coimbra, o cristão novo Antônio Homem, queimado pela Inquisição em 1624, o tabelião, ancestral( quem isso imaginaria na primeira década do século XVII!). da Casa que ombreará, em ambição e poder, com a Casa da Torre” (1983:34).   “Os monges que receberam de Catarina Álvares a doação da ermida de Nossa Senhora da Graça, bem como de uma vasta área ao redor e eram grandes proprietários de grandes extensões de terra na zona do rio Jaguaribe, nas imediações de Santo Amaro de Ipitanga e Itapoá, passaram, entretanto, a submeter Garcia D’Ávila já bastante enfermo nos últimos anos de sua vida, a crescente pressões a fim de força-lo a fazer mais  doações ao Mosteiro de São Bento (...) E o cerco dos beneditinos chegou a tal ponto que o poderoso Garcia D’Ávila, sentindo-se por eles coagido e impedido de dispor livremente dos seus bens, teve de ir “fugindo” de casa para  o hospital da Santa Casa de Misericórdia, a fim de que pudesse agir conforme sua consciência mandava. A indignação contra tal procedimento ele não escondeu. Manifestou-a, reiteradas vezes, ao ditar em 18 de maio de 1609 seu testamento(...) (2000:96-197)

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