Lisboa está deserta, Praça do
Comércio, Rua Augusta, Rossio, Restauradores, Avenida da Liberdade. Era
madrugada. Gatos pingados procuravam suas portas para adentrarem as suas casas,
mas eu estava ali, andando sozinha pelas calçadas molhadas e vendo as fachadas
iluminadas dos velhos prédios. Ah como era boa esta sensação! Lisboa era só
minha, as portas fechadas me davam a segurança de que estava só, que àquela
hora dificilmente alguém sairia delas para me amedrontar ou respirar o ar
que, naquele momento, eu me apossara, era todo meu.
Não sentia outro cheiro que não a
da rua molhada, das pedras brilhantes encharcadas da chuva. Tudo sombrio, mas
se consegue, senão todos, eu vejo, ver beleza nestas noites frias, molhadas e
com uma iluminação meio opaca, mas que embelezavam, mais ainda, as grandes
fachadas.
A estação do Rossio, já com as
suas portas fechadas mostrava todo o seu esplendor, como é linda! Tudo meu
agora, tinha um sentimento de posse, naquele momento eu era a dona de tudo, não
tinha de dividir nada com ninguém.
Medo? Não, nenhum. Só sentimentos
bons. Lisboa minha, se entregando de uma outra maneira, solitária como eu
naquele momento, se deixava percorrer sem reclamar de nada. Não se ouvia nem
mesmo passos na calçada; se alguém se aproximasse eu poderia ouvir com muitos
metros de distância, pois o silêncio era quem dominava o ambiente. Eu e meus
passos éramos o que se ouvia. Sento-me para que nem mesmo os meus passos,
sequer a minha respiração, seja ouvida. Fecho os olhos: vivo toda a beleza
dessa cidade fantástica, deste centro que eles chamam de baixa. Ah baixa de
Lisboa! Ah, quantas saudades sinto agora destes momentos de extrema entrega tua
e minha! Nesses momentos éramos uma só, eu me confundia com as suas pedras, com
os seus monumentos, com os seus aromas.
Caminhava sozinha pelos lugares
que, sabia, voltaria de dia, com a luz intensa dos dias brilhantes da cidade,
todavia, não seria a mesma coisa de agora, pois eu iria dividir você com
tantos, que nem mesmo, na grande maioria das vezes, pisam forte em suas pedras,
com raiva, com pressa, sem terem tempo de olhar a sua beleza, sem entenderem
que as suas pedras, secas ou molhadas, embora sempre brilhantes, contam
histórias diversas, as suas e as deles, pois cada um faz uma história (relacionamento) quando passam sobre elas.
Olho agora a Pensão Ibérica.
Sempre tive uma curiosidade danada de entrar ai. Como será? Quem será que vive
nesse lugar? Nunca entrei, só poderia
fazê-lo pela parte do dia. A noite poderia ficar estranho que eu, sozinha, entre
e pergunte alguma coisa. Fiquei na curiosidade até hoje, mas quem sabe, um dia
tomo uma coragem e entro e invento qualquer motivo para estar ali, procurando
um quarto talvez.
Vejo as escadas da estação do
metro dos Restauradores: está fechada, o metro a esta hora não funciona, só
poderia voltar para casa, naquele momento, de táxi. Nem mesmo camionetas passam
nesse horário.
Um casal vem andando na rua,
parecem bêbados; fico com inveja, pois eles estão alegres, felizes, ainda que
momentaneamente, beijam-se, sorriem, gargalham.
Quando passam por mim, percebo que são brasileiros. Penso comigo: Que bom!
Tomara que amanheçam assim, pois sei perfeitamente que a vida cotidiana dos
brasileiros aqui não é sempre de risos.
Todavia, o pensamento passa rápido
e volto a concentrar-me em você. Fico na dúvida agora, subo a Liberdade, ou
volto ao Rossio, agora pelas portas de Santo Antão? Decido que vou entrar na
Rua do Hard Rock e seguir pelas Portas de Santo Antão até a lateral do Teatro,
e é o que faço. Os restaurantes estão
todos fechados. Não há mesas na rua, elas estão empilhadas. A rua está livre só
para mim. Passo pela porta do Teatro, pela Sociedade de Geografia, pela Casa do
Alentejo, por tantos e tantos prédios históricos. Olho extasiada para todos. Meu coração
acelera, as pedras soam a cada passada minha, a minha bota faz o toc, toc, que no
silêncio de tudo parece ressoar como batidas fortes em portas de madeira. Como brilham as pedras. Lembro-me da música
que Carminho canta, e por um momento ando com ela, como se as pedras molhadas pudessem
me trazer alguém, ou então, chorarem por alguém que se foi. O candeeiro da
esquina, mesmo sem a luz da lua, não traz qualquer sombra de ninguém ou de
nada, apenas a sua luz faz brilhar, mais e mais, as pedras da rua.
O Largo de São Domingos está
completamente vazio e eu paro e fico olhando tudo aquilo. Olho para a porta da Ginjinha,
um pensamento passa: Fico aqui esperando o dia amanhecer para tomar uma
ginja? Maluquice. O que tenho de fazer é
ir embora, por mais segura que seja Lisboa, não posso ficar aqui sozinha às
duas horas da manhã.
Alcanço a frente do teatro, tenho
de me afastar dali rápido, ali dormem moradores de rua, e ainda que possam ser
inofensivos, me provocam uma sensação estranha.
Tenho de procurar um táxi, o que já está difícil àquela hora, mas há
sempre um salvador da pátria, ali mesmo à porta do teatro. Entro nele e dou o
endereço, não sem antes olhar mais uma vez a Praça, a sua solidão, tal qual a
minha, e a sua luminosidade, a que não tenho, e a que invejo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário