segunda-feira, 13 de junho de 2016

Um Corregedor "ficha suja" - Brasil Colônia

Manoel falava-me de muitas coisas, umas eu gostava, outras, nem por isso. Pois eu não tinha qualquer interesse nelas, ouvia-o a lutar contra o sono, a tentar ficar com os olhos abertos, pois não queria de nenhuma maneira, aborrecê-lo ou deixar que ele pensasse que eu estava a fazer pouco caso da sua cultura.
Pois, de que me valia saber que, no ano de 1549, quando o primeiro governador geral do Brasil cá chegou, trouxe, entre os homens que o acompanharam, um senhor de nome Pero Borges, que viria a ocupar o cargo de Ouvidor Geral.
Ouvidor Geral!  O que seria isto? O que este homem faria?
Manoel não deixava nada por um quilo, e já ia dizendo logo o que era, para que servia, enfim, dava-me uma aula do que para mim era inútil. Afinal eu era uma mulher, que vivia “portas a dentro” com ele, não tinha qualquer fidalguia, não podia, sequer, aparecer em público consigo. Então para que saber de tanta coisa? Aliás, se eu falasse alguma coisa do que Manoel comentava, certamente, estaria em maus lençóis, pois então uma mulher, sem eira ou beira, que vivia “fora da lei” com um homem, seja em relação aos homens, seja em relação a Deus, ia ser perdoada por falar de nobres, fidalgos, homens bons! Chicotadas, era o mínimo que poderia acontecer. E o Manoel coitado! Como ficaria? Melhor mesmo era ouvir, saber, calar. E, às vezes, ri ao encontrar na rua algum personagem do Manoel. Ninguém entendia nada, até pensavam que eu era louca, pois, de vez em quando, ria sozinha andando pelas ruas lamacentas da cidade.
Igreja Matriz de Reguengos de Monsarraz Pt.
Todavia, voltemos ao Pero Borges, o tal do Ouvidor geral. Manoel estava indignado e olhe que já se tinham passado anos, nós ainda nem  vivíamos juntos e ele ainda não trabalhava para o governo, era ainda um frangote a recém-chegado da Metrópole, para onde veio com o sonho de criar riqueza e retornar para a sua cidade natal, Reguengos de Monsarraz,  no Alentejo.
Hoje Manoel tinha lembrado-se desse senhor, exatamente pelo fato de que a Inquisição estava fazendo uma cata as bruxas (1591) e pelo fato de que o novo governador geral, Francisco das Manhas (era este o seu apelido) poderia acabar com tantas falcatruas, e em nome Del Rei, dar um basta em tantos desmandos.
Manoel dizia: como poderia dar certo? Pois não é que aquele homem, que chegara ao Brasil com a nobre função de aplicar a justiça, era nada mais nada menos de que um ex-funcionário público português, que foi condenado por desvio de verbas públicas quando da construção do aqueduto, o que só foi descoberto porque a obra não pode ser concluída por falta de verbas[1].
Mesmo com o massante assunto eu me esforçava para compreender e acompanhar aquela lamentação do Manoel, que estava realmente preocupado com a Inquisição e com o novo governo.
Aquele homem, bradava Manoel, fora condenado em Portugal e deveria cumprir pena de três anos afastado do exercício de qualquer função pública, mas fora nomeado, um ano e meio depois da sentença de condenação, para exercer o cargo de Ouvidor Geral, trazendo um documento assinado por El Rey, que determinava que “todas as autoridades e moradores da colônia lhe obedeçam e cumpram inteiramente as suas sentenças, juízos e mandados em tudo o que ele fizer e mandar” [2]
Os seus poderes eram imensos e equiparados aos desembargadores da Casa de Suplicação do Reino.
O Ouvidor geral era a autoridade suprema da justiça territorial no Brasil. Conhecia por ação nova, dos casos crimes, para o que tinha alçada até morte natural inclusive, quanto aos escravos, peões, christãos, gentios livres, devendo, porém, nos casos em que, segundo o direito, coubesse a pena de morte, inclusive, tratando-se de pessoas dessa qualidade, proceder nos respectivos feitos afinal e despacha-los com o governador geral, sem apelação, se fossem conformes os seus votos; e, no caso de discordância, deviam ser os autos, com os réus, remetidos ao corregedor em Lisboa, para sentença. (MAX FLEIUSS:1922-21).
Para aqueles que tivessem menos posses, “pessoas de mor qualidade”, Pero Borges poderia aplicar a pena de degredo de até cinco anos. Tinha ainda competência para causas cíveis, com alçada de sessenta mil reis.
Manoel, indignado, falava, falava, falava. Eu não percebia a sua aflição, até por não perceber muitas das palavras que ele utilizava: “alçada, competência, degredo”, esta última eu tinha uma pequena noção, que era tirar alguém de um lugar, forçadamente e mandar para outro, recurso, enfim, eu não tinha estudado, era quase uma porta. O pouco que sabia quem me ensinara fora o Manoel, que pacientemente me ensinou a ler e escrever, embora eu escrevesse muito poucos. No mais, todas as informações que tinha era as dos disse-me disse das ruas de Salvador.
Rua em Monsarraz - Alentejo.Pt
Que tristeza! Dizia Manoel, é uma vergonha para o Reino, pois não é que este “corrupto” deveria fazer correições; este miserável, que praticou crime de lesa majestade, desviando para si dinheiro público, tanto que a obra não pode ser concluída, o que levou a indignação dos vereadores que escreveram para o Rei pedindo à investigação que fora autorizada, chegando-se à conclusão de que o homem fizera mesmo o desvio do dinheiro, sendo condenado a devolver aos cofres públicos o valor correspondente à quantia desviada e a ficar afastado por três anos de exercício de cargo público. Imagine Maria! O valor desviado foi de 114.064 reis. Foi este miserável que veio para cá para punir, coitados, indígenas, escravos, e toda e qualquer pessoa que cometesse qualquer crime. É este miserável que veio para cá e pasme Maria! Nomeado pelo próprio Rei que autorizou a investigação.
Mas a coisa não parou por aí.  O Rei, inclusive, autorizou que fosse adiantado salário para o Ouvidor. Uma vergonha. Queria saber, com certeza, se este desgraçado devolveu o dinheiro. O primeiro governador retornou ao Reino, e, quando da chegada do segundo, acredite se quiser: o desgraçado do Pero Borges passou a responder, também, pelo cargo de provedor mor, ou seja, ele lidava com as finanças da Colônia.  Não dá para acreditar, mas foi assim mesmo.
Pero Borges, além de poder decidir sobre a vida e a morte das pessoas, ainda tinha poderes de correição, tanto que foi ele a fazer a primeira correição que se tem noticia no Brasil, visitou entre agosto a outubro de 1549 muitos lugares nas capitanias do Sul e foram as suas opiniões sobre as donatárias, que fez com que houvesse um declínio da autoridade dos capitães donatários. (GONÇALVES, A.2015:26).
Imagine Maria, esse homem tinha todo este poder e ousou fazer relatório para o Rei informando que a administração pública estava completamente inchada, existindo funcionários em demasia, além de desqualificar as pessoas que ocupavam alguns dos cargos municipais, “preenchidos por degredados, supostamente inadequados: alguns deles tinham sido punidos em Portugal, tendo as orelhas cortadas”. (SCHWARTZ, S.B.1979:25).
Pois é Maria, lastimava-se Manoel, É um descabimento, e não se vê nada a melhorar!
BIBLIOGRAFIA
FLEIUSS Max, História Administrativa do Brasil, 2ª. Ed. Cia Melhoramentos, SP, 1922.
GONÇALVES, A.  Direito e Justiça em terras D´el- Rei  na São Paulo Colonial 1709-1822, SP. Imprensa Oficial, 2015
PEREIRA DE ALMADA, V de S.  Elementos para um Dicionário de Geografia e História Portuguesa, 1888, Elvas. Portugal
SCHWARTZ, S.B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial, SP, Perspectiva, 1979 (trad. Maria Helena Pires Martins).





[1] Ver. PEREIRA DE ALMADA, V de S.  Elementos para um Dicionário de Geografia e História Portuguesa, 1888, Elvas. Portugal
[2] Regimento que levou Tomé de Souza governador do Brasil, Almerim, 17/12/1548, Lisboa, AHU, códice 112, fls. 1-9.

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