Manoel falava-me
de muitas coisas, umas eu gostava, outras, nem por isso. Pois eu não tinha
qualquer interesse nelas, ouvia-o a lutar contra o sono, a tentar ficar com os olhos
abertos, pois não queria de nenhuma maneira, aborrecê-lo ou deixar que ele
pensasse que eu estava a fazer pouco caso da sua cultura.
Pois, de que me
valia saber que, no ano de 1549, quando o primeiro governador geral do Brasil
cá chegou, trouxe, entre os homens que o acompanharam, um senhor de nome Pero
Borges, que viria a ocupar o cargo de Ouvidor Geral.
Ouvidor
Geral! O que seria isto? O que este
homem faria?
Manoel não
deixava nada por um quilo, e já ia dizendo logo o que era, para que servia,
enfim, dava-me uma aula do que para mim era inútil. Afinal eu era uma mulher, que
vivia “portas a dentro” com ele, não tinha qualquer fidalguia, não podia,
sequer, aparecer em público consigo. Então para que saber de tanta coisa?
Aliás, se eu falasse alguma coisa do que Manoel comentava, certamente, estaria em
maus lençóis, pois então uma mulher, sem eira ou beira, que vivia “fora da lei”
com um homem, seja em relação aos homens, seja em relação a Deus, ia ser
perdoada por falar de nobres, fidalgos, homens bons! Chicotadas, era o mínimo
que poderia acontecer. E o Manoel coitado! Como ficaria? Melhor mesmo era
ouvir, saber, calar. E, às vezes, ri ao encontrar na rua algum personagem do
Manoel. Ninguém entendia nada, até pensavam que eu era louca, pois, de vez em
quando, ria sozinha andando pelas ruas lamacentas da cidade.Igreja Matriz de Reguengos de Monsarraz Pt. |
Manoel dizia:
como poderia dar certo? Pois não é que aquele homem, que chegara ao Brasil com
a nobre função de aplicar a justiça, era nada mais nada menos de que um ex-funcionário
público português, que foi condenado por desvio de verbas públicas quando da
construção do aqueduto, o que só foi descoberto porque a obra não pode ser
concluída por falta de verbas[1].
Mesmo
com o massante assunto eu me esforçava para compreender e acompanhar aquela
lamentação do Manoel, que estava realmente preocupado com a Inquisição e com o
novo governo.
Aquele homem,
bradava Manoel, fora condenado em Portugal e deveria cumprir pena de três anos
afastado do exercício de qualquer função pública, mas fora nomeado, um ano e meio
depois da sentença de condenação, para exercer o cargo de Ouvidor Geral,
trazendo um documento assinado por El Rey, que determinava que “todas as
autoridades e moradores da colônia lhe obedeçam e cumpram inteiramente as suas
sentenças, juízos e mandados em tudo o que ele fizer e mandar” [2]
Os seus poderes
eram imensos e equiparados aos desembargadores da Casa de Suplicação do Reino.
O Ouvidor geral
era a autoridade suprema da justiça territorial no Brasil. Conhecia por ação
nova, dos casos crimes, para o que tinha alçada até morte natural inclusive,
quanto aos escravos, peões, christãos, gentios livres, devendo, porém, nos casos
em que, segundo o direito, coubesse a pena de morte, inclusive, tratando-se de
pessoas dessa qualidade, proceder nos respectivos feitos afinal e despacha-los
com o governador geral, sem apelação, se fossem conformes os seus votos; e, no
caso de discordância, deviam ser os autos, com os réus, remetidos ao corregedor
em Lisboa, para sentença. (MAX FLEIUSS:1922-21).
Para aqueles que
tivessem menos posses, “pessoas de mor qualidade”, Pero Borges poderia aplicar
a pena de degredo de até cinco anos. Tinha ainda competência para causas
cíveis, com alçada de sessenta mil reis.
Manoel,
indignado, falava, falava, falava. Eu não percebia a sua aflição, até por não
perceber muitas das palavras que ele utilizava: “alçada, competência, degredo”,
esta última eu tinha uma pequena noção, que era tirar alguém de um lugar,
forçadamente e mandar para outro, recurso, enfim, eu não tinha estudado, era
quase uma porta. O pouco que sabia quem me ensinara fora o Manoel, que
pacientemente me ensinou a ler e escrever, embora eu escrevesse muito poucos. No
mais, todas as informações que tinha era as dos disse-me disse das ruas de
Salvador.
Rua em Monsarraz - Alentejo.Pt |
Mas a coisa não
parou por aí. O Rei, inclusive,
autorizou que fosse adiantado salário para o Ouvidor. Uma vergonha. Queria
saber, com certeza, se este desgraçado devolveu o dinheiro. O primeiro
governador retornou ao Reino, e, quando da chegada do segundo, acredite se
quiser: o desgraçado do Pero Borges passou a responder, também, pelo cargo de provedor
mor, ou seja, ele lidava com as finanças da Colônia. Não dá para acreditar, mas foi assim mesmo.
Pero Borges,
além de poder decidir sobre a vida e a morte das pessoas, ainda tinha poderes
de correição, tanto que foi ele a fazer a primeira correição que se tem noticia
no Brasil, visitou entre agosto a outubro de 1549 muitos lugares nas capitanias
do Sul e foram as suas opiniões sobre as donatárias, que fez com que houvesse
um declínio da autoridade dos capitães donatários. (GONÇALVES, A.2015:26).
Imagine Maria,
esse homem tinha todo este poder e ousou fazer relatório para o Rei informando
que a administração pública estava completamente inchada, existindo
funcionários em demasia, além de desqualificar as pessoas que ocupavam alguns
dos cargos municipais, “preenchidos por degredados, supostamente inadequados:
alguns deles tinham sido punidos em Portugal, tendo as orelhas cortadas”.
(SCHWARTZ, S.B.1979:25).
Pois é Maria,
lastimava-se Manoel, É um descabimento, e não se vê nada a melhorar!
BIBLIOGRAFIA
FLEIUSS Max, História Administrativa do Brasil, 2ª. Ed.
Cia Melhoramentos, SP, 1922.
GONÇALVES,
A.
Direito e Justiça em terras
D´el- Rei na São Paulo Colonial
1709-1822, SP. Imprensa Oficial, 2015
PEREIRA DE ALMADA, V de S. Elementos
para um Dicionário de Geografia e História Portuguesa, 1888, Elvas.
Portugal
SCHWARTZ,
S.B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial, SP, Perspectiva, 1979 (trad.
Maria Helena Pires Martins).
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