Mais uma vez
estou andando por Salvador, estou em frente à Catedral Basílica do Salvador, a
Igreja está fechada, sento nas suas escadarias e fico olhando o movimento da
Praça do Terreiro, olho as baianas sofisticadas, com roupas lindas e muitas
contas, pintura exagerada, olho-as com os olhos de ver, e vejo o que virou a
nossa baianidade, uma forma de exploração, de ganhar dinheiro. Ao mesmo tempo
em que vejo isto, também me transporto e vejo as negras de ganho mercando os
seus produtos ainda no tempo colonial e da escravidão. Tiro o olhar destas baianas, que quase atacam
os turistas que passam por minha frente. Eles sem me vir e sem qualquer olhar
igual ao meu, são quase que atropelados pelas baianas: sorriem, tiram fotos,
pagam até para isto, são guiados para as casas de “gemas”. Eu, diferentemente
deles, fico realmente vendo, entendendo, procurando identificar os traços da
nossa Salvador colonial, ali naquele lugar de tamanha importância para a nossa
história. Mais uma vez sinto uma angustia imensa, apesar de ter alguma
conservação, o Terreiro de Jesus e o Pelourinho precisam de obras de
conservação. O casario precisa ser preservado, a história precisa apresentar-se
aos soteropolitanos, e assim poder ser visualizada, exatamente, através de
nosso patrimônio, que o Estado tem obrigação de conservar.
Apesar de tudo,
meus olhos de ver conseguem se afastar do presente, e eu volto ao período colonial,
e mais uma vez, a 1591 – 1594, quando a inquisição aqui esteve. Estou de costas
para o Colégio dos Jesuítas onde o Heitor Furtado de Mendonça está cumprindo o seu
grande papel: o de Visitador da Inquisição de Lisboa, estou com muito medo,
pois soube, não me perguntem como, que hoje quem vai estar sentada diante do
Inquisidor será a “ Maria Arde-lhe-o-Rabo.
Não estranhem a alcunha, ela está correta, é assim que todos a chamavam
e foi assim, que ela chegou até à Inquisição.
Eu estou amedrontada! Para segurar o meu Manoel, já tinha me servido dos seus favores. Eu já tremia
só de pensar em uma denúncia, uma leve alusão ao meu nome e eu estaria
encrencada. Já estava preocupada com a minha vida “portas a dentro” com o
Manoel, que era tolerada, mas não legal, e agora esta; a Maria na Inquisição. Fico
imaginando quem foi que denunciou a Arde-lhe-o- Rabo. Afinal ela fazia um trabalho para as pessoas que iam
procura-la, resolvia problemas entre casais,aliás, fui procura-la, exatamente para
isto, porque fiquei desconfiada que o meu Manoel estava se desinteressando da minha pessoa, e eu jamais ia querer isto,
ele era a minha esperança de uma melhor vida, de uma possível ida para a Metrópole,
enfim, de ter uma vida boa, sem passar
as dificuldades normais que uma mulher sozinha, solteira, numa cidade em que os homens não queriam as mulheres para casar, apenas para
fornicar ou lhes servirem de empregada. O Manoel era diferente e eu não queria
perde-lo de maneira alguma.
Estava por ali
exatamente para saber o que aconteceria com a Arde-lhe-o-Rabo. E ouvi alguns
comentários de alguns que, assustados quanto eu, queriam notícias da
Inquisição, não só sobre a Maria, mas sobre os outros que por ali passaram e que
tiveram condenações. O período de graça tinha acabado, e, portanto, agora todos
que por ali passassem e fossem condenados pelo Tribunal teriam penas, que
poderiam ser cumpridas aqui mesmo, ou quem sabe, dependendo da gravidade, na
Metrópole.
Eu procurara a
Maria, como já disse, para que o Manoel me desejasse mais, não me abandonasse,
fui procurar o meu bem, entretanto, outras pessoas, e eu sabia disto por ouvir
falar, procuravam a Maria para outros fins, e não só a Maria era procurada,
também o eram a Antônia Fernandes – “A Nobrega, ” a “Isabel Boca Torta”, a Violante.
Efetivamente foi
por nosso intermédio, ou seja:
[...] “das mulheres,
com efeito, que a tradicional magia erótica portuguesa enraizou-se no Brasil,
instaurando-se ao longo dos séculos com diversos elementos indígenas e
africanos. E não só para conseguir maridos ou adivinha-los, conforme já
mencionamos alhures, mas para numerosos outros fins afetivos, as mulheres
apelavam ao sobrenatural, protagonizando em vários sentidos a vida amorosa na
Colônia. Algumas usavam de tais expedientes para maltratar e vingar-se de
homens indesejáveis, e, até mesmo aniquilá-los como no caso de Catarina Froés,
moradora da Bahia e casada com um antigo escrivão em fins do século XVI,
Catarina havia procurado Maria “Arde-lhe-o-Rabo, de quem já falamos, com o
firme propósito de matar um genro[...][1].
A Maria
“Arde-lhe-o-Rabo” era a alcunha de Maria Gonçalves Cajada. Que era mesmo
famosa,
[...][2]afirmava
vagar descabelada e nua pelos adros e matos, em busca de feitiços: “porque
ponho-me à meia noite no meu quintal com a cabeça ao ar com a porta aberta para
o mar e enterro e desenterro umas botijas e estou nua da cinta para cima e com
os cabelos e falo com os diabos e os chamo e estou com eles em muito perigo...”
[...]
Miserável! A Catarina
foi quem denunciou a pobre da Maria Arde-lhe-o-Rabo” colocando todas nós, as
suas clientes, em polvorosa, todas temendo o pior e preocupadas, ainda mais,
como seriam as reações dos nossos maridos e companheiros. Ah Meu Deus, não
posso perder o Manoel, o que vai ser de mim.!Só me resta, entretanto, esperar.
A desgraçada havia dito:
[....] que
haverá um ano que nesta cidade cometeu e acabou com Maria Gonçalves, d’alcunha
Arde-lhe-o-Rabo, mulher não casada, vagabunda, ora ausente, que lhe fizesse uns
feitiços para que um seu genro Gaspar Martins, lavrador morador em Tassuapina ou morresse ou o matassem ou
não tornasse da guerra de Sergipe, sertão desta capitania, na qual então estava, por não dar boa vida à sua
mulher moça, filha dela confessante por nome Isabel Fonseca, e isto entendendo
que os ditos feitiços haviam de ser arte do diabo[...][3]
Fiquei sabendo,
que não só a Catarina Froes fez a denúncia, como também a Paula de Siqueira,
aquela lá que andava com a Felipa de
Souza, denunciou a “Boca Torta”, informando que esta lhe
ensinou a dizer umas palavras “ hoc est
enim” na boca do seu marido enquanto aquele estivesse dormindo e que lhe queria
bem, ainda, na mesma assentada, disse
que a “Boca Torta” “lhe deu uma carta de tocar, dizendo-lhe que tinha tanta
virtude que em quantas coisas tocasse se iriam após ela, a qual carta ela
confessante não leu e nem usou dela, somente tendo a intenção de usar, a deu a
uma velha por nome Mécia Dias”[4].
Não satisfeita,
a infeliz da Paula, ainda falou da tal da “pedra d’ara”[5]
que Maria Vilela mandou pegar na Igreja.[6]
Mais ainda havia
uma denunciante de efeito, a Violante, esta tinha as suas diferenças com a
“Arde-lhe o Rabo” e, numa vingança, foi denunciá-la.
Agora sim, estava tudo
perdido mesmo, então o Manoel já nao me tinha lido o Titulo XXXII, do Livro V das
Ordenações Manuelinas, que era explicita em relação a tal pedra! Ah Jesus,
agora é que eu não vou ter saída mesmo! Se a Arde-lhe-o-Rabo for tão desleal
quanto as suas clientes, eu estaria perdida.
A pena,
inevitável para quem fosse pego com a “pedra d’ara, era a morte natural. Ah se
vocês soubessem o que significava morte natural para a lei! Certamente jamais pensariam em fazer qualquer
quase utilizando-a, e a infeliz vai lá dizer que alguém pegou a tal pedra.
Alguém estaria
correndo o risco de ser enforcada; eu, naturalmente, não seria, pois nunca vi tal
pedra, mas só em saber que eu sabia que alguém a tinha utilizado já era uma
agravante para qualquer pecado que eu tivesse cometido e que a Inquisição
viesse a saber.
Morte natural
significaria um enforcamento, isto seria muito ruim mesmo, embora soubesse que o povo da
Bahia, possivelmente, ficaria muito feliz em ver um espetáculo deste.
Bom, afinal
soubemos o que aconteceria com a Maria Gonçalves, vulgo Arde-lhe-o-Rabo; na
verdade teve uma condenação até branda, pois como consta do Processo, logo no
primeiro fólio “ parece que tudo são embustes e enganos as culpas desta ré o; quais constam de sua confissão extra judicial, sem as testemunhas lhe haverem
visto cousa alguma por onde parece que, o conhecimento desta causa pertence
mais ao ordinário que à Inquisição. ” [7]
[...] Por
despacho da Mesa de 24/01/1593, na Baía, em visitação procedida pelo Inquisidor
Heitor Furtado de Mendonça, a ré irá auto público em corpo com uma vela acesa
na mão e com uma carocha infame na cabeça, ficará em pé enquanto se celebrar a missa
e ouvirá ler a sua sentença, será embarcada para o reino, cumprirá penitencias
espirituais, instrução na fé e pagamento de custas[...][8]
Afinal a
“Arde-lhe-o-Rabo teve mesmo uma pena branda, dado que ela já viera de Portugal
como desterrada, exatamente para cumprir pena por feitiçaria. Apesar de
esperamos quase dois anos para saber o que aconteceria com a Maria, ficávamos
na expectativa do que ela iria fazer com a Violante Carneira, uma das que a
denunciaram com mais ênfase, também ficamos sabendo que o tiro da Violante saiu pela
culatra, pois que ela, quando foi denunciar a Arde-lhe-o-Rabo, já teria sido
denunciada por outras pessoas, resultando que a sua condenação foi pior do que
a da primeira.
‘Sentença: auto-da-fé
privado de 29/01/1592. Ir ao auto-da-fé com vela acesa na mão, degredada por
quatro anos para fora da capitania da Baía de Todos os Santos, penitências
espirituais, e pagamento de custas. ”[9]
Dita sentença
foi publicada em 24/01/1593, na Sé da cidade de Salvador e, por despacho de
25.01.1594, foi-lhe comutada a restante pena de cárcere em penitências
espirituais.[10]
Bom, eu fiquei ilesa, Graças a Deus, e torcendo mesmo para que o Visitador fosse embora para que a minha paz retornasse e Manoel deixasse de mandar eu ler a Bíblia Sagrada, que fora toda marcada por ele em partes que havia referencia à feitiços a exemplo:
Bom, eu fiquei ilesa, Graças a Deus, e torcendo mesmo para que o Visitador fosse embora para que a minha paz retornasse e Manoel deixasse de mandar eu ler a Bíblia Sagrada, que fora toda marcada por ele em partes que havia referencia à feitiços a exemplo:
[...] Não haja
em seu meio alguém que queime o próprio filho, nem que faça presságio, pratique
astrologia, adivinhação ou magia, nem que pratique encantamento, consulte
espíritos ou adivinhos, ou também invoque os mortos. Pois quem pratica essas
coisas é abominável para Javé[...][11]
[...]Vão ficar
de fora os feiticeiros, os imorais e todos os que amam e praticam a mentira”.[12]
[...[Não se
dirijam aos necromantes e nem consultem adivinhos, porque eles tornarão vocês
impuros. Eu sou Javé, o Rei de vocês.[13]
É, o Manoel me
obrigou a ler todos estes trechos, e, aproveitando que o livro sagrado estava
em minhas mãos, fui até o Eclesiastes e entendi o motivo de gostar tanto de
olhar com os meus olhos de ver, e soube o que os meus olhos de ver procuram: “[...]
Toda explicação fica pela metade, pois o homem não consegue terminá-la. O olho
não se farta de ver e nem o ouvido se farta de ouvir”.[14]
Assim, sigo eu
pelas ruas da minha cidade do Salvador da Baía, para cada dia mais reconstruir
um momento, ajudando o meu povo a compreender o que somos e porque assim somos,
e para que não se concretize o que está em Eclesiastes; “Ninguém lembra dos
antigos, e aqueles que existem não serão
lembrados pelos que virão depois deles. ”[15]
[1]
VAINFAS, R. Trópico dos Pecados – Moral,
Sexualidade e Inquisição no Brasil, Rio de Janeiro, Campus, 1989, pp
135-136.
[2]
SOUZA, L.M de, Inferno Atlântico –
Demonologia e Colonização Séculos XVI – XVIII, São Paulo, Cia das Letras,
1993, pp52-53
[3] VAINFAS,
R. (Org.) Santo Oficio da Inquisição de Lisboa- Confissões da Bahia, São
Paulo, Cia das Letras, 1997, pp.119-120
[4] Idem.
pp.104-114
[5]
Pedra d’ara – pedra de mármore nos altares, onde são guardadas as relíquias
dos santos
[6] VAINFAS,
R (org.). ob. cit. p 112
[7]
PT/TT/TSO-IL/028/10748 - Processo de Maria Gonçalves Cajada
[8]
Idem
[9]
PT/TT/TSO-IL/028/12925 Processo de Violante Carneiro
[10] Idem
[11]
Deuteronômio 18:9 -12
[12]
Apocalipse 22:15
[13]
Levítico, 19:31
[14]
Eclesiastes I:8
[15] Idem
11
Olá, estamos nós chegando por aqui. Linguagem adorável assim como o transpor do tempo de forma sublime. Parabéns!
ResponderExcluirMaravilhoso texto. Obrigado
ResponderExcluirBom quando alguem gosta do que produzimos, agradeço
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