Indígenas - Álbuns Santos Rufino |
Esses usos e costumes,
desde quando o Código Civil Português de 1867 autorizou a sua observação,
apesar da imposição dos limites ali, também, fixados, derivados dos princípios
da moralidade e da humanidade nos moldes ocidentais, passaram a ser fonte legal, autorizada pelo
ordenamento jurídico português, de resolução dos conflitos. Dessa maneira o ordenamento jurídico
português reconheceu a norma costumeira, sem, entretanto, institucionalizá-la,
ou seja; reconheceu a existência do direito costumeiro, mas não lhe acatou os
princípios. Certificou a sua existência, facultando a sua aplicação
pelos juízes na resolução dos conflitos envolvendo os indígenas nas suas colônias.
Por que isto foi levado a efeito? Porque
verificou-se a ineficácia do ordenamento jurídico português diante das relações
sociais envolvendo os indígenas, sujeitos sociais não alcançados pelas leis
metropolitanas. O conjunto de leis, tanto materiais, quanto formais, era
insuficiente para resolver os conflitos resultantes daquelas relações
sociais, produzidos pelos desvios de conduta exigidos pelas tradições desconhecidas
pelo ocidente, e se conhecidas, não mais utilizadas na atualidade, porque
contrárias ao que era tido como
civilizado.
Essa autorização legal para a observação do direito consuetudinário dos indígenas gerou uma ordem plural, imposta
pelas circunstâncias e reconhecida legalmente. Um pluralidade legal criada
artificialmente pela legislação, a fim de que os colonizadores retirassem das
autoridades tradicionais o poder de resolver os seus
próprios conflitos e pudessem manipular estas tradições, amoldando-as de
acordo com os princípios da moralidade e da civilização nos moldes ocidentais.Um
processo de aceitação das tradições como forma de enfraquecimento delas e de
meio de subordinação dos africanos.
Por que não podemos considerar,
como hoje, esta aceitação da ordem
jurídica “costumeira” como um pluralismo jurídico nos termos em que este é, atualmente, considerado, estudado, justificado? Porque o pluralismo hoje está assente na
idéia de justiça social, de aproximar a justiça ao cidadão e de concretizar a
sua maior característica que é ser, efetivamente, “justa”. É a aceitação de soluções derivadas
do convívio social, que não estão estratificadas dentro do ordenamento jurídico
estatal, mas que fazem parte do Estado social como um todo, como meio de
resolução dos conflitos que são gerados
no dia a dia e dentro das comunidades.
São condutas que não estão, na realidade, abrangidos pela lei,
exatamente por surgirem do quotidiano de situações novas que não estão
previstas nas hipóteses legais e que necessitam de uma resposta urgente, não só
para que a ordem seja reestabelecida, mas para que a justiça se faça de
imediato, de forma democrática, e, por isso mesmo acatada pelos participes dos
conflitos. É a certificação da existência de um “direito vivo”, crescente, não
estratificado pela lei. Um direito que regula condutas que fogem das hipóteses
previstas, e, por isso mesmo, exige soluções outras, que, também, não estão previstas
na lei. Observe-se bem, são regulações de conduta sem regulações anteriores, é
uma distribuição da justiça em que as partes interessadas é que criam as suas próprias
soluções, acatando-as e colocando um fim
aos conflitos, uma aplicação da justiça que independe, inclusive, do judiciário .
Arquivo Histórico de Moçambique |
Existindo, anteriormente ao
direito trazido de fora, o direito
consuetudinário não foi criado, surgiu e se desenvolveu e adaptou-se exatamente
pelo convívio social no espaço da comunidade em que ele era observado.
Era pronto e acabado, no sentido de existência, quando os colonizadores chegaram e
era, como todo o conjunto de normas, um instrumento de dominação, de
exercício de poder, porque havia a subalternidade entre o detentor do poder,
aquele que podia julgar os conflitos e estabelecer as sanções em nome dos
antepassados, dos espíritos, enfim, das forças sobrenaturais e os demais membros
da comunidade. A sua força era tão grande, que o Estado português se viu
forçado a reconhecer a existência dele e
autorizar a sua aplicação, não como forma de distribuição da justiça e nem de
resolução dos conflitos de uma forma “justa”, mas como forma de domínio e de
manutenção da ordem e da diferença entre
os europeus e os “nativos”, aqui entendidos como os habitantes
originários da África lusófona; tanto que o Estado não acata os princípios do direito
consuetudinário, não reconhece, na realidade, as suas “normas”, reconhece
simplesmente a sua existência como forma
de resolução de litígios, mas impondo
limites, seja no que se refere às sanções, aos meios de prova, seja em
relação às autoridades judicantes. O Estado Português jurisdicionalizou a ordem
social indígena para ter um maior controle sobre esta.
Na atualidade o pluralismo é
entendido como uma abertura da ordem estatal
no sentido de recepcionar outras ordens normativas surgidas da
convivência, das reivindicações dos interesses da coletividade; ele proporciona
o surgimento de novas tipificações jurídicas resultantes da pratica reiterada de
determinadas ações.
A concepção de uma justiça mais
democrática, mas aproximada do cidadão, da comunidade faz parte do próprio
conceito do pluralismo jurídico, portanto, nestes termos, não há como assegurar
a existência de um pluralismo jurídico no “estado colonial”. Houve sim, uma
pluralidade de normas, mas não um pluralismo jurídico como forma democrática de
resolução de conflitos.
O monopólio da criação estatal do
direito do período colonial foi responsável pelo reconhecimento do direito
consuetudinário dos indígenas como fonte de direito, embora sujeita aos limites
impostos por esta mesma ordem, e a sua aplicação por todos os agentes responsáveis, também, era autorizada pela
lei, positivando assim a existência de uma
ordem extra jurídica, no sentido de que não fazia parte do ordenamento jurídico
português.
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