sexta-feira, 17 de maio de 2019

Garcia D'Ávila XXII -Um núncio nada amistoso


Chovera a noite toda. A Rua da Gloria estava, mais uma vez, alagada. Olhei do portão e a rua parecia um rio, peixinhos passavam pela água barrenta, a água já estava a meio palmo do portão. Da minha casa   A rampa da garagem já estava toda coberta de água. Uma lástima. A rua estava deserta, evidentemente que ninguém podia sair das suas casas. Pensei na pobre da Christiani, certamente a casa dela já tinha alagado, fica na parte mais baixa da rua e a menor chuva enche tudo.  De repente pareceu-me ver alguns cavalos entrando na rua, digo para mim mesmo,” que coisa estranha. A rua toda alagada e gente andando (nadando) a cavalo !” Deduzi que os cavalos poderiam passar pela água, então alguém estava vindo ajudar os que não podiam sair de casa.
Fecho o portão e entro em casa, que continua toda fechada. Os vidros embaçados, pois a junção da chuva e do salitre não é boa.  Fico deitada na sala e pego um livro para ler. Não podia fazer absolutamente nada, nem mesmo ficar na varanda, pois a chuva forte de açoite molhava tudo. Mal começo a minha leitura, o tratado sobre o Brasil de  Frei Vicente do Salvador ouço batidas fortes no portão. Pensei logo em Christiani, e sequer lembrei da chuva e sai correndo para abrir o portão. Surpresa!  Três  homens montados em cavalos  estavam à minha porta. Tomo um baita susto. Até porque eles eram muito estranhos, vestidos com roupas diferentes, chapéus diferentes, e não pareciam estar molhados.
- Quem são vocês?
Um deles, tirando o chapéu responde:
-Sou Manoel Pereira Gago,  procurador da Casa da Torre e amigo  de Garcia D`Ávila.
- Quem?
Não acreditei no que ouvia. Outro  morto para me sacanear. Assim eu não aguento, falei para mim mesma. Esta casa vai virar um anexo de Tatuapara, ou da Igreja da Sé, onde Garcia DÁvila foi enterrado.
Pensei em fechar o portão dar meia volta e entrar em casa outra vez. Mas de que adiantaria? O tal do Manoel Pereira Gago entraria de qualquer forma, ele, os outros dois homens, seus cavalos,  todos  eram espíritos e passariam pelo muro, portão, enfim, entrariam de qualquer maneira, ai resolvi rapidamente  enfrentar a situação.  A chuva, entretanto, continuava, eu me molhando toda, tinha que voltar para a varanda. Os homens continuavam como se aquele temporal não estivesse acontecendo. Por outro lado, era muito interessante não tratar mal o Senhor  Gago, afinal ele poderia ser uma grande fonte de informações, caso o senhor Garcia não aparecesse mais. O homem era procurador da Casa da Torre e foi o tutor do neto do Garcia D´ávila, além de tutor virou sogro, enfim, aquele senhor era um poço sem fundo de conhecimento sobre os Garcia D´Ávila.
- Sim, Senhor Manoel. O sr disse que é amigo do Senhor Garcia D´Ávila. Onde ele está? Faz tempo que não aparece.
- Exatamente por este motivo que aqui estou. O Garcia está muito doente, está lá no Hospital da Misericórdia e pediu-me par te vim buscar.
- Me buscar? Para que? Para levar-me onde?
- Ah minha jovem, ainda não tenho o dom da adivinhação. Apenas sou amigo dele, e lhe quero fazer o que pode ser a sua última vontade.
-Senti um calafrio no corpo. Puta merda. O senhor Garcia não podia fazer isto comigo. Será mesmo que ele deixaria de me fazer visitas? Será que iria aceitar a sua morte mesmo, e não mais viria conversar comigo? Quem então iria me falar de coisas da Bahia colonial, de acontecimentos histórico importantes?  De coisas pitorescas? Acho que fiquei tão atônita, que o homem perguntou-me:
-Estas pálida, Sentes-te bem? E de um salto desceu do cavalo e eu senti sua mão forte a pegar no meu braço, para evitar que eu caísse.
-Estou bem sim. Mas o que aconteceu com o Se Garcia?
- O Garcia  está muito fraco e  para não ficar aqui em Tatuapara aguentando, inclusive a pressão dos padres beneditinos, foi ter à Misericórdia e  pede que a menina vá lá ter. consigo
- Como vou sair desta, penso eu? O Senhor não está a ver como está a rua, não posso sair daqui agora.
- Que tem a rua?
-Não vês que a rua está alagada?
-Alagada? Estás a brincar?
Meu Deus! O que faço agora.  Como me sair desta?
- Infelizmente não vos posso acompanhar. Diga ao senhor Garcia que assim que a água baixar vou ter com ele, todavia, hoje é impossível.
O Senhor Manoel Pereira Gago, que de gago não tinha nada, quase vociferou;   achei que ia me bater, mas  montou no cavalo e partiu com os seus dois acompanhantes. Acho que o Senhor Garcia mandou que ele me tratasse bem
Voltei para dentro de casa, e de imediato fui procurar ver no computador  quem era este homem que se dizia amigo de Garcia D´Ávila, e na verdade, o que estava acontecendo mesmo com o Senhor Garcia.
Coloco no google o nome – MANOEL PEREIRZ GAGO, descubro uma série de coisas: uma delas, a mais importante: é que fora escolhido pelo Garcia D´Ávila como tutor do seu neto. Fiquei realmente desesperada. Então o senhor Garcia, quase como uma despedida, mandava me avisar da sua morte e do seu desejo de falar comigo, talvez pela última vez? Entretanto, como as coisas estavam eu não podia sair de casa. Este último pensamento me deixou incrédula. Estás doida mulher? Então ias fazer o que? Ir na Santa Casa de Misericórdia? Ias lá procurar por GARCIA D’ÁVILA ? As pessoas iam te levar diretamente para uma casa de “loucos”. O pior é que pensei mesmo nisto. O que eu poderia fazer? Nada, então decidi ficar na sala lendo mais coisas sobre o Pereira Gago e a sua amizade com o Garcia D´Ávila.
Evidentemente que eu sabia que o Pereira Gago fora  nomeado tutor de Francisco  Garcia D´Ávila, só não sabia o seu nome completo, e fui para os livros de testamento  do São Bento e tentar tirar mais informações; por outro lado, já ia pensando na perspectiva de que o senhor Garcia me deixasse e também falasse do seu neto, Francisco Dias D´Ávila, o filho de Isabel com um dos filhos do velho Caramuru, o que uniu as duas famílias das mais poderosas da Bahia..
Intrigada mesmo com a aparição de outro personagem histórico, queria logo saber por que o homem fora escolhido e a ligação entre os dois, Garcia e o Gago. Também me fazia espécie que tudo isto estava acontecendo no dia 20 de maio, segundo historiadores, o dia da morte do Garcia D`Ávila há quatrocentos e setenta anos atrás.
Dizia para mim mesma: A minha ligação com este homem é mesmo muito forte. Será que ele era meu parente mesmo, afinal ele tinha Garcia, meu pai tinha Garcia, toda a minha família galega tinha Garcia, eu e meus irmãos não o tínhamos por erro de cartório.
Achei o testamento[1] e recomeço a lê-lo com toda a atenção possível, já o lera antes, mas agora com o recado da morte próxima do Senhor da Torre e da visita do seu amigo e tutor do neto, tinha de fazê-lo criteriosamente. Certamente as entrelinhas do documento ia me mostrar alguma coisa, que não percebera antes. O que mais me intrigava mesmo, era o fato do de que o que fora escolhido tutor era das bandas de Porto Seguro. 
Não, o testamento não acrescentara muita coisa, mas relembrei o quanto o senhor Garcia estava aborrecido com os Padres do São Bento. Segundo ele os padres fizeram com que ele assinasse  uma doação de muitas terras para eles, mas, em disposição de última vontade ele anulou todas as doações feitas, fez  o seu neto seu maior herdeiro.
Fiquei mesmo preocupada, o fato do Senhor Garcia morrer não me incomodava muito, ele já estava morto mesmo, mas a perspectiva de não vê-lo mais, pois se acaso ele aceitasse a morte nesse momento, todos os meus planos iam para o beléleu, entretanto, nisto tudo havia uma esperança, a de que, caso o Sr da Torre não aparecesse mais, o Sr Pereira Gago podia, muito bem substituí-lo, e aí seria ótimo, porque o a lacuna deixada pelo Senhor da Torre seria preenchida, e não só, agora eu saberia do Francisco Dias D’Ávila, o neto, sobre o qual o Senhor Garcia sempre se recusou a falar.
Com esta esperança fico aguardando  nova visita, seja de um, seja de outro. fico aguardando um peguei no sono.






[1] Livro II Tombo do Mosteiro de São Bento, p 284


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