segunda-feira, 1 de abril de 2019

Garcia D´Ávila XXI - Os Antunes do Matoim


Desde ontem que venho chamando pelo Senhor Garcia, afinal de contas queria parabeniza-lo pelos 470 anos de Salvador da Bahia de Todos os Santos, sim, é assim que a Salvador planejada em Portugal por Luís Dias, projeto aprovado pelo Rei, era identificada. Afinal de contas o homem ajudou a fundar a cidade, povoá -la, fazê-la crescer. Naturalmente que não o fez por amor ao Rei, evidentemente que não,  o que o Garcia D´Ávila sempre quis, aliás, morreu com o mesmo pensamento, era enriquecer, empoderar-se mesmo, ficar cheio de dinheiro. Ser, como foi, o Senhor da Torre, fundando uma das casas mais antigas, poderosas e ricas da Bahia,  A CASA DA TORRE.


Chamei muito, mas o miserável não aparecia de maneira alguma. Comecei a pensar na morte do Senhor Garcia, afinal de contas da última vez que ele apareceu estava bem alquebrado, chegou mesmo a cair.  Fiquei me perguntando: O homem vai morrer em 1609, se bem me lembro, da última vez que ele esteve aqui,  no dia que disse-me que ia me contar uma novidade, para ele já estávamos(ele claro) em 1604, ou seja  daquele momento ele só teria mais 5 anos de vida, muito pouco tempo, E o que iria acontecer quando chegasse o momento da sua morte?  Sei que vocês podem estar dizendo que eu to ficando doida, talvez até esteja, pois não é muito normal alguém ficar dialogando com um espirito que apareceu do nada e me conta coisas da nossa Bahia colonial. As vezes fico na dúvida: Será eu é ele mesmo que me conta ou eu leio estas coisas?  Bom, mas o certo é que andava mesmo preocupada com o ano de 1609. E se ele desaparecesse de vez?  Eu, pessoalmente, achava que isto iria acontecer. E digo isto porque, depois de 1609 o que teria o Senhor Garcia para me contar? Nada. Ele faleceu e ia se recolher na sua alcova da morte para sempre. Sua missão para comigo estava cumprida, me dera muitas dicas e me contara coisas que os livros de história não contam,

Bom, como o Senhor Garcia não me ouviu até este momento, resolvia, sozinha  falar de Salvador e da sua fundação, bem verdade que já fiz isto, acho que no primeiro texto e também quando  falei de Caramuru, mas a história se renova sempre, uma descoberta de um documento novo, um marco que é encontrado, uma nova evidencia de algum acontecimento, uma ruína aqui, enfim.
Desta vez calhou que passaram um documentário sobre Salvador, e não é que neste documentário apareceu uma novidade, novidade mesmo sobre a história de Salvador.  Um fazendeiro encontrou um marco da cidade em suas terras. A fazenda dele fica em Candeias, e o marco que mostram na televisão tinha a inscrição do Tombo. Fiquei entusiasmada, que maravilha de descoberta para a nossa história, que bom que este fazendeiro chamou as pessoas certas para entregar esta preciosidade. No mais, para mim, nada do que o repórter trouxe de informação foi novidade, mas isto é para mim, porque eu tenho certeza que muitos dos que viram este documentário não sabiam de alguns dos fatos trazidos pela reportagem.

Só um historiador, e assim mesmo que se dedique à investigação, sabe que existe o Arquivo Histórico do Ultramar o AHU. Uma preciosidade, espero que o governo português procure preservar este arquivo. Nele temos, não interessa que a história oficial contada apenas por uma das partes envolvidas, uma fonte inesgotável de conhecimento da história do Brasil, em particular da Bahia, aqui onde tudo começou. Somo, a Bahia, o berço da civilização brasileira. Sim, porque somos uma civilização, não adianta ninguém querer tirar este nosso lugar no mundo.
 
E lá vou eu escrevendo e nada do Senhor da Torre aparecer.

O documentário continua, e, aliás outro fato que eu não sabia, que o Tome de Souza está enterrado (restos mortais) estão em uma igreja, igreja esta que fica em uma propriedade privada, em um sitio chamado Vila Franca de Xira, que fica pertinho de Lisboa. Se tivesse eu sabido antes já tinha dado um jeito de pedir autorização ao proprietário para ir neste espaço.  Achava que os restos mortais do Tomé de Sousa estavam em Rates, lugar do seu nascimento e também do nascimento do Garcia D´Ávila.

Aqui tenho de fazer um aparte.  A importância de Tomé de Souza para a nossa cidade e para o nosso país como um todo merecia que os seus restos mortais estivessem aqui – NO BRASIL, - especificamente na cidade do Salvador, mais especificamente, ou na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, ou na Conceição da Praia ou na Catedral Basílica.  Seria o lógico, e não em uma Igreja caído aos pedaços, numa propriedade privada em Vila Franca de Xira, acho que vou escrever para o Ministro da Cultura a este respeito.

Enquanto escrevo sobre a informação que tive ontem, não percebi que o Senhor Garcia estava instalado no meu sofá. Ele olhava-me teclando as teclas da “madeira preta”, como ele denominava o meu computador e parecia intrigado com aquilo.

Levantei a vista e lá estava ele olhando-me e sua cara parecia mais um ponto de Interrogação

-Olá Senhor Garcia, não vi o senhor chegar.

-Claro que não, quando estas em frente a este pedaço de madeira preta, não vez ninguém, não falas com ninguém, parece que não existe mais nada além disto.

Sorri, mas, imediatamente, parei de teclar e olhei diretamente para o Senhor Garcia – Sabes que dia é hoje?

- Um dia como outro qualquer. Só não entendi até agora porque me chamavas tanto. Desde ontem que tenho a sensação que estás a me chamar.

-Chamei sim senhor Garcia, queria muito falar com o senhor e lhe dar parabéns.

-Parabéns! Por que Parabéns. Não é meu aniversário.

- Não é o do senhor, mas é aniversario da Cidade de Salvador da Bahia

- Que dia é hoje mesmo?

-Dia 29 de março

Me escusei de dizer o ano, se eu o fizesse as coisas começariam a desandar desde ali. O Senhor Garcia ia me chamar de louca, bruxa, qualquer coisa do gênero. Acho que desta vez ele me denunciava mesmo. Então eu ia dizer que estamos em 2019 a um homem que só viveu até 1609?

- E mesmo, há 60 anos chegamos nesta terra. Não tinha aqui absolutamente nada. Já fizemos tantas e tantas coisas, já temos hospitais, igrejas, mosteiros. Eu tenho lá minha Torre em Tatuapara, meus rebanhos, minhas terras. A terra produz açúcar, já temos o porto para escoar a produção de açúcar, há muitos ricos nesta cidade, homens de bem compõe a Câmara, conseguimos “civilizar” muitos indígenas.

Quando o senhor Garcia falou em “civilizar indígenas” não pude deixar de rir. O que seria para o Senhor da Torre “civilizar”?  Escravizar indígenas, fazer aldeamentos, obrigar os pobres coitados a seguir a fé católica, seria isto o sinônimo de civilizar do Senhor Garcia? Não questionei nada, somente ri e fiquei pensando no que ele estaria pensando.  Uma coisa é certa, se eu contestasse esta “civilização” ele por certo iria embora e eu ficaria sem informações e eu precisava saber a quem pertencia estas terras onde o tal marco fora encontrado. Por que em Candeias é que estava este marco?

Engenho Matoim - foto encontrada arquivo Iphan
- Senhor Garcia, a quem pertencia as terras do Recôncavo?

Terras do Recôncavo? Que terras, para que lado?

-Pros lados do Matoim

-Jorge Antunes. Tem um engenho muito bem montado por lá.  A propriedade “era composta de um engenho, casa grande e da Igreja de Nossa Senhora do Rosário;”[1]

É mesmo? Me fale mais deste senhor?

-Qual o seu interesse nele?

-Ora senhor Garcia, eu me interesso pela história da Bahia colonial, e se este homem foi  importante na  nossa história, quero saber de detalhes.

-Quem é importante nesta cidade é o Governador Geral, os Juízes, eu, os homens bons, os padres.

- Que é isto senhor Garcia, cada pessoa que contribuiu com a formação desta cidade é importante. Aliás, o Sr. Antunes é um senhor de engenho, é um homem respeitado, Vá lá e me fala deste Antunes.

- A família chegou nestas bandas com o governador Mem de Sá; aliás, vieram na mesma nau. O patriarca da família, HEITOR ANTUNES, era um cristão novo, que aproveitou a chance de se livrar da Inquisição, que e perseguia os judeus na Europa, para vim para o Brasil, ele era mercador e era casado com a Sra  Ana Rodrigues. Heitor Antunes morreu em 1576, mas já estava instalado no Engenho Matoim. O Engenho continuou sendo levado pelos sua esposa e filhos.

- Mas Matoim não fica perto de São Francisco do Conde?

- São Francisco do Conde! Não sei do que falas. Não estas a referir-se a Sergipe do Conde?

- Deve ser Senhor Garcia, deve ser.

- Se estas a falar  de Sergipe  do Conde, estas a falar do  Engenho de Mem de Sá- Bom quando chegamos  aqui tínhamos um plano para a fundação da cidade, que tinha limites pequenos, depois estes limites começaram a se expandir,  por ordem do Rei, expressa no regulamento trazido por nós, em que  Sua Majestade  mandava que o governador percorresse uma área de 6 léguas além da costa, a fim de encontrar um sitio para fundar a cidade. E isto foi realmente feito. O sitio escolhido era pequeno, mas como todo o percurso indicado foi feito, foram colocados marcos para indicar que a terra pertencia a Portugal. Um bem da coroa, mas não me consta que este marco tenha ficado em terras que depois pertenceria ao Mem de Sá.
- Mas não poderia ficar em Matoim: no Engenho dos Antunes?
- Não sei, nunca ouvi falar nada parecido.
Ao que parece o senhor Garcia não vai me contar qualquer coisa nova que mereça ser publicada, e não questionei mais nada, entretanto o Senhor Garcia parece não querer parar de falar dos Antunes e me disse:
- Sabes que o Heitor Antunes, mesmo morto foi denunciado à Inquisição?
-Não, não sabia.
- Admiras-me que não saiba, ficas a fuçar a vida de todos nesta madeira preta.
Pois é, Quando o Heitor Furtado foi para o Recôncavo em 1592 recebeu muitas denuncias a respeito das praticas judaicas pela família de Heitor Antunes, como ele estava morto, a sua família pagou o parto. A Ana, esposa  do Heitor fez a sua confissão em 1 de fevereiro de 1592, foi condenado por Heitor Furtado e mandada para Lisboa onde, apesar de “ condenada a ser  “relaxada ao braço secular” (morte na fogueira), após anos de cárcere morreu na prisão e foi queimada em efigie  por sentença de 09 de maio de 1604, a qual amaldiçoa  a sua memória e ordena que seus ossos sejam desenterrados e feitos em pó” ANTT, II. Proc. 11618[2].
- Pôxa Senhor Garcia esse Heitor Furtado era mesmo muito ruim
- Todavia não foi só a Sra Ana que foi condenada pela Inquisição. Também sua filha de nome Leonor, que também “foi enviada para Lisboa encarcerada e processada,  Sentenciada em 1603, a sair  no auto público, abjurar em forma e a cárcere e habito com fogos, perpetuamente, sem remissão. ANTT, II, proc.10716 “ [3] Além desta filha, também a outra de nome Beatriz que também, à semelhança de sua irmã, foi condenada a habito perpetuo desenhado com fogos sem remissão.[4]
- Quanta maldade deste homem! Dizimar uma família assim.
- Quem manda eles continuarem com a pratica judaizantes?  A função do visitador é realmente sta, condenar aqueles que não seguem a fé católica.
- Mas senhor Garcia, o marido e pai destas senhoras era um homem de respeito nesta cidade. Lembre-se que era tão importante que foi coletor do imposto do açúcar, o seu engenho foi objeto de muitas citações em diversos   livros sobre a Bahia, a exemplo do Tratado de Gabriel Soares,
O velho Garcia D´Ávila fechou a cara, eu bem sabia que ele ia se aborrecer, ele realmente não gostava que se desse  valor a quem merecia este valor, era prepotente mesmo e só ficava satisfeito se eu falasse exclusivamente dele, de suas posses, de sua importância. Como sempre, olhou-me com a cara feia e foi-se, sem, mais uma vez me contar a novidade que ele me disse, na outra visita, que tinha para me contar.   


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[1] Informações que podem ser encontradas no site do Iphan. De acordo com o mesmo site o Engenho  foi destruído pelos holandeses e reconstruído pela família Rocha Pita no século XVIII . Em 1973 o Estado da Bahia desapropriou  a propriedade para fazer parte do Centro Industrial de Aratu.
[2] VAINFAS, Ronaldo  Santo Oficio da Inquisição de Lisboa – Confissões da Bahia,São Paulo. Cia das Letras, 1997, pg281-282
[3] Idem, p 288
[4] Ibdem p 275.

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