Desde
ontem que venho chamando pelo Senhor Garcia, afinal de contas queria
parabeniza-lo pelos 470 anos de Salvador da Bahia de Todos os Santos, sim, é
assim que a Salvador planejada em Portugal por Luís Dias, projeto aprovado pelo
Rei, era identificada. Afinal de contas o homem ajudou a fundar a cidade, povoá
-la, fazê-la crescer. Naturalmente que não o fez por amor ao Rei, evidentemente
que não, o que o Garcia D´Ávila sempre
quis, aliás, morreu com o mesmo pensamento, era enriquecer, empoderar-se mesmo,
ficar cheio de dinheiro. Ser, como foi, o Senhor da Torre, fundando uma das
casas mais antigas, poderosas e ricas da Bahia,
A CASA DA TORRE.
Chamei
muito, mas o miserável não aparecia de maneira alguma. Comecei a pensar na
morte do Senhor Garcia, afinal de contas da última vez que ele apareceu estava
bem alquebrado, chegou mesmo a cair.
Fiquei me perguntando: O homem vai morrer em 1609, se bem me lembro, da
última vez que ele esteve aqui, no dia
que disse-me que ia me contar uma novidade, para ele já estávamos(ele claro) em
1604, ou seja daquele momento ele só teria
mais 5 anos de vida, muito pouco tempo, E o que iria acontecer quando chegasse
o momento da sua morte? Sei que vocês
podem estar dizendo que eu to ficando doida, talvez até esteja, pois não é
muito normal alguém ficar dialogando com um espirito que apareceu do nada e me
conta coisas da nossa Bahia colonial. As vezes fico na dúvida: Será eu é ele
mesmo que me conta ou eu leio estas coisas?
Bom, mas o certo é que andava mesmo preocupada com o ano de 1609. E se
ele desaparecesse de vez? Eu,
pessoalmente, achava que isto iria acontecer. E digo isto porque, depois de
1609 o que teria o Senhor Garcia para me contar? Nada. Ele faleceu e ia se recolher
na sua alcova da morte para sempre. Sua missão para comigo estava cumprida, me
dera muitas dicas e me contara coisas que os livros de história não contam,
Bom,
como o Senhor Garcia não me ouviu até este momento, resolvia, sozinha falar de Salvador e da sua fundação, bem
verdade que já fiz isto, acho que no primeiro texto e também quando falei de Caramuru, mas a história se renova
sempre, uma descoberta de um documento novo, um marco que é encontrado, uma
nova evidencia de algum acontecimento, uma ruína aqui, enfim.
Desta
vez calhou que passaram um documentário sobre Salvador, e não é que neste
documentário apareceu uma novidade, novidade mesmo sobre a história de
Salvador. Um fazendeiro encontrou um
marco da cidade em suas terras. A fazenda dele fica em Candeias, e o marco que
mostram na televisão tinha a inscrição do Tombo. Fiquei entusiasmada, que
maravilha de descoberta para a nossa história, que bom que este fazendeiro
chamou as pessoas certas para entregar esta preciosidade. No mais, para mim, nada
do que o repórter trouxe de informação foi novidade, mas isto é para mim,
porque eu tenho certeza que muitos dos que viram este documentário não sabiam
de alguns dos fatos trazidos pela reportagem.
Só
um historiador, e assim mesmo que se dedique à investigação, sabe que existe o
Arquivo Histórico do Ultramar o AHU. Uma preciosidade, espero que o governo
português procure preservar este arquivo. Nele temos, não interessa que a
história oficial contada apenas por uma das partes envolvidas, uma fonte inesgotável
de conhecimento da história do Brasil, em particular da Bahia, aqui onde tudo
começou. Somo, a Bahia, o berço da civilização brasileira. Sim, porque somos
uma civilização, não adianta ninguém querer tirar este nosso lugar no mundo.
E
lá vou eu escrevendo e nada do Senhor da Torre aparecer.
O
documentário continua, e, aliás outro fato que eu não sabia, que o Tome de
Souza está enterrado (restos mortais) estão em uma igreja, igreja esta que fica
em uma propriedade privada, em um sitio chamado Vila Franca de Xira, que fica
pertinho de Lisboa. Se tivesse eu sabido antes já tinha dado um jeito de pedir
autorização ao proprietário para ir neste espaço. Achava que os restos mortais do Tomé de Sousa
estavam em Rates, lugar do seu nascimento e também do nascimento do Garcia D´Ávila.
Aqui
tenho de fazer um aparte. A importância
de Tomé de Souza para a nossa cidade e para o nosso país como um todo merecia
que os seus restos mortais estivessem aqui – NO BRASIL, - especificamente na
cidade do Salvador, mais especificamente, ou na Igreja de Nossa Senhora da
Ajuda, ou na Conceição da Praia ou na Catedral Basílica. Seria o lógico, e não em uma Igreja caído aos
pedaços, numa propriedade privada em Vila Franca de Xira, acho que vou escrever
para o Ministro da Cultura a este respeito.
Enquanto
escrevo sobre a informação que tive ontem, não percebi que o Senhor Garcia
estava instalado no meu sofá. Ele olhava-me teclando as teclas da “madeira
preta”, como ele denominava o meu computador e parecia intrigado com aquilo.
Levantei
a vista e lá estava ele olhando-me e sua cara parecia mais um ponto de
Interrogação
-Olá
Senhor Garcia, não vi o senhor chegar.
-Claro
que não, quando estas em frente a este pedaço de madeira preta, não vez ninguém,
não falas com ninguém, parece que não existe mais nada além disto.
Sorri,
mas, imediatamente, parei de teclar e olhei diretamente para o Senhor Garcia –
Sabes que dia é hoje?
-
Um dia como outro qualquer. Só não entendi até agora porque me chamavas tanto.
Desde ontem que tenho a sensação que estás a me chamar.
-Chamei
sim senhor Garcia, queria muito falar com o senhor e lhe dar parabéns.
-Parabéns!
Por que Parabéns. Não é meu aniversário.
-
Não é o do senhor, mas é aniversario da Cidade de Salvador da Bahia
-
Que dia é hoje mesmo?
-Dia
29 de março
Me
escusei de dizer o ano, se eu o fizesse as coisas começariam a desandar desde
ali. O Senhor Garcia ia me chamar de louca, bruxa, qualquer coisa do gênero.
Acho que desta vez ele me denunciava mesmo. Então eu ia dizer que estamos em
2019 a um homem que só viveu até 1609?
-
E mesmo, há 60 anos chegamos nesta terra. Não tinha aqui absolutamente nada. Já
fizemos tantas e tantas coisas, já temos hospitais, igrejas, mosteiros. Eu
tenho lá minha Torre em Tatuapara, meus rebanhos, minhas terras. A terra produz
açúcar, já temos o porto para escoar a produção de açúcar, há muitos ricos
nesta cidade, homens de bem compõe a Câmara, conseguimos “civilizar” muitos
indígenas.
Quando
o senhor Garcia falou em “civilizar indígenas” não pude deixar de rir. O que
seria para o Senhor da Torre “civilizar”?
Escravizar indígenas, fazer aldeamentos, obrigar os pobres coitados a
seguir a fé católica, seria isto o sinônimo de civilizar do Senhor Garcia? Não
questionei nada, somente ri e fiquei pensando no que ele estaria pensando. Uma coisa é certa, se eu contestasse esta
“civilização” ele por certo iria embora e eu ficaria sem informações e eu
precisava saber a quem pertencia estas terras onde o tal marco fora encontrado.
Por que em Candeias é que estava este marco?
Engenho Matoim - foto encontrada arquivo Iphan |
-
Senhor Garcia, a quem pertencia as terras do Recôncavo?
Terras
do Recôncavo? Que terras, para que lado?
-Pros
lados do Matoim
-Jorge
Antunes. Tem um engenho muito bem montado por lá. A propriedade “era composta de um engenho,
casa grande e da Igreja de Nossa Senhora do Rosário;”[1]
É
mesmo? Me fale mais deste senhor?
-Qual
o seu interesse nele?
-Ora
senhor Garcia, eu me interesso pela história da Bahia colonial, e se este homem
foi importante na nossa história, quero saber de detalhes.
-Quem
é importante nesta cidade é o Governador Geral, os Juízes, eu, os homens bons,
os padres.
-
Que é isto senhor Garcia, cada pessoa que contribuiu com a formação desta
cidade é importante. Aliás, o Sr. Antunes é um senhor de engenho, é um homem
respeitado, Vá lá e me fala deste Antunes.
-
A família chegou nestas bandas com o governador Mem de Sá; aliás, vieram na
mesma nau. O patriarca da família, HEITOR ANTUNES, era um cristão novo, que
aproveitou a chance de se livrar da Inquisição, que e perseguia os judeus na
Europa, para vim para o Brasil, ele era mercador e era casado com a Sra Ana Rodrigues. Heitor Antunes morreu em 1576,
mas já estava instalado no Engenho Matoim. O Engenho continuou sendo levado
pelos sua esposa e filhos.
-
Mas Matoim não fica perto de São Francisco do Conde?
-
São Francisco do Conde! Não sei do que falas. Não estas a referir-se a Sergipe
do Conde?
-
Deve ser Senhor Garcia, deve ser.
- Se
estas a falar de Sergipe do Conde, estas a falar do Engenho de Mem de Sá- Bom quando chegamos aqui tínhamos um plano para a fundação da
cidade, que tinha limites pequenos, depois estes limites começaram a se
expandir, por ordem do Rei, expressa no
regulamento trazido por nós, em que Sua
Majestade mandava que o governador
percorresse uma área de 6 léguas além da costa, a fim de encontrar um sitio
para fundar a cidade. E isto foi realmente feito. O sitio escolhido era
pequeno, mas como todo o percurso indicado foi feito, foram colocados marcos
para indicar que a terra pertencia a Portugal. Um bem da coroa, mas não me
consta que este marco tenha ficado em terras que depois pertenceria ao Mem de
Sá.
- Mas
não poderia ficar em Matoim: no Engenho dos Antunes?
- Não
sei, nunca ouvi falar nada parecido.
Ao que parece o senhor Garcia não vai me contar qualquer coisa nova que mereça ser
publicada, e não questionei mais nada, entretanto o Senhor Garcia parece não
querer parar de falar dos Antunes e me disse:
-
Sabes que o Heitor Antunes, mesmo morto foi denunciado à Inquisição?
-Não,
não sabia.
-
Admiras-me que não saiba, ficas a fuçar a vida de todos nesta madeira preta.
Pois
é, Quando o Heitor Furtado foi para o Recôncavo em 1592 recebeu muitas
denuncias a respeito das praticas judaicas pela família de Heitor Antunes, como
ele estava morto, a sua família pagou o parto. A Ana, esposa do Heitor fez a sua confissão em 1 de
fevereiro de 1592, foi condenado por Heitor Furtado e mandada para Lisboa onde,
apesar de “ condenada a ser “relaxada ao
braço secular” (morte na fogueira), após anos de cárcere morreu na prisão e foi
queimada em efigie por sentença de 09 de
maio de 1604, a qual amaldiçoa a sua
memória e ordena que seus ossos sejam desenterrados e feitos em pó” ANTT, II.
Proc. 11618[2].
- Pôxa
Senhor Garcia esse Heitor Furtado era mesmo muito ruim
-
Todavia não foi só a Sra Ana que foi condenada pela Inquisição. Também sua
filha de nome Leonor, que também “foi enviada para Lisboa encarcerada e processada, Sentenciada em 1603, a sair no auto público, abjurar em forma e a cárcere
e habito com fogos, perpetuamente, sem remissão. ANTT, II, proc.10716 “ [3]
Além desta filha, também a outra de nome Beatriz que também, à semelhança de
sua irmã, foi condenada a habito perpetuo desenhado com fogos sem remissão.[4]
-
Quanta maldade deste homem! Dizimar uma família assim.
- Quem
manda eles continuarem com a pratica judaizantes? A função do visitador é realmente sta,
condenar aqueles que não seguem a fé católica.
- Mas
senhor Garcia, o marido e pai destas senhoras era um homem de respeito nesta
cidade. Lembre-se que era tão importante que foi coletor do imposto do açúcar,
o seu engenho foi objeto de muitas citações em diversos livros sobre a Bahia, a exemplo do Tratado
de Gabriel Soares,
O
velho Garcia D´Ávila fechou a cara, eu bem sabia que ele ia se aborrecer, ele
realmente não gostava que se desse valor
a quem merecia este valor, era prepotente mesmo e só ficava satisfeito se eu
falasse exclusivamente dele, de suas posses, de sua importância. Como sempre,
olhou-me com a cara feia e foi-se, sem, mais uma vez me contar a novidade que
ele me disse, na outra visita, que tinha para me contar.
.
[1]
Informações que podem ser encontradas no site do Iphan. De acordo com o mesmo
site o Engenho foi destruído pelos
holandeses e reconstruído pela família Rocha Pita no século XVIII . Em 1973 o
Estado da Bahia desapropriou a
propriedade para fazer parte do Centro Industrial de Aratu.
[2]
VAINFAS, Ronaldo Santo Oficio da
Inquisição de Lisboa – Confissões da Bahia,São Paulo. Cia das Letras, 1997,
pg281-282
[3]
Idem, p 288
[4]
Ibdem p 275.
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