Soube, pela rede, que ele falecera hoje. Leu a notícia sem surpresa, porque tem consciência plena que
todos da sua época estão mais para lá de que para cá, e, de agora em diante,
muitas vezes terá de passar por estes momentos.
Ficou triste sim, bem verdade, e
começou a pensar no convívio que tiveram enquanto ambos estavam na ativa.
Um dos primeiros encontros
aconteceu quando ela, ainda substituta, foi trabalhar numa daquelas Juntas
problemáticas da região. Ela era escolhida para as porcarias, sempre mostrou
muita disposição e determinação para o trabalho, e, talvez por isso mesmo, era
convocada para resolver problemas.
Uma destas Juntas de Conciliação
e Julgamento foi a de Santo Amaro da Purificação. Passou ali maus bocados. Teve de se indispor com muitos, desde
funcionários a advogados e até com a cúpula do Tribunal.
Não sabe se ele lembrava do homem
que disse ter um dia representado o Brasil numa destas cortes internacionais,
ela sempre achara que quem teria realizado este feito fora o Ruy Barbosa,
afinal ele era conhecido como o “Águia de Haia”, mas, em Santo Amaro, descobriu
que houve outro, e este outro, que conheceu, afinal não era nenhum matusalém
para ter qualquer tipo de contemporaneidade com o primeiro, lhe causou
problemas. Bom o fato é que esse que disse ter representado o Brasil na corte,
embora até hoje ela não saiba o motivo, foi fazer uma audiência na Junta em que
ela era, então, Presidente.
O homem era nervoso, um senhor já
com uma idade avançada, já na época de se recolher, mas insistia em trabalhar,
o que achava louvável, mas o impedimento não era só a velhice, pior que ela
era, exatamente, uma das suas consequências, ele tinha uma insuficiência
auditiva. Alguns já haviam falado desse advogado, mas ela ainda não tinha tido
o desprazer de vê-lo em ação. Nas poucas
oportunidades em que esteve com ele, não fez instrução do processo, e a audiência
fora adiada, portanto não sabia bem como era a sua maneira de atuar, o que
descobriu em momento pouco adequado.
Era uma audiência de instrução,
onde as partes prestariam o depoimento pessoal. Acontece que o cliente do digníssimo
doutor não compareceu, o que implicava em confissão quanto as matérias de fato.
O doutor quis tumultuar a audiência fazendo todos os tipos de impertinências e
requerimentos, inclusive de adiamento da audiência, todas as tentativas foram rechaçadas
pela Juíza Presidente. Encerrada a instrução, em alegações finais, o doutor excedendo
o seu tempo, não parava de falar, debalde os esforços da presidente para
fazê-lo calar. Ele falava, falava e falava
e a única solução foi não tomar nada que ele falou após o seu tempo legal de
alegações finais e esperar que se dignasse a parar de falar, o que demorou
muito, deixando a neófita Juíza para lá de irritada.
A sentença, como sempre, foi publicada no dia
seguinte, e em determinado trecho a Juíza se referia ao comportamento do senhor
advogado, inclusive fazendo referência à conveniência da sua surdez, porque ela
descobriu que o que comentavam era mesmo verdade: O digníssimo doutor simplesmente desligava o
aparelho e fazia o que queria sem ser interrompido, porque não ouvia o que
estavam lhe dizendo.
Esta referência causou uma grande
indignação no homem de Haia, tão grande que ele fez uma representação contra a
Juíza Presidente, que inclusive teve e contratar um advogado para apresentar a
sua defesa.
Um dia, entretanto, ainda sem que
a representação fosse apreciada, a Presidente recebe um convite para comparecer
à Presidência do Tribunal, e lá se vai ela sem saber muito o que lhe esperava.
Em lá chegando foi levada à presença do Sr.
Presidente, que por acaso era este senhor cuja morte foi anunciada hoje, e aí
começou o seguinte diálogo:
- Como está a senhora doutora?
- Bem, e o senhor?
- Bem.
- Sim doutor, qual o motivo deste
convite?
-Doutora nós queremos saber qual
a possibilidade da senhora fazer uma retratação pública em relação ao Dr. Fulano
de tal?
Ousada, como sempre: - Eu ouvi direito? Como é que é mesmo?
Retratação!!!!
- Sim doutora, estamos falando de
um senhor, um homem com uma grande carreira, estimado por muitos, um senhor idoso
conceituado, com uma folha de trabalho impecável. etc. etc. etc.
- Doutor, salvo engano, eu dei
uma decisão, decisão esta terminativa do feito, e não há como modificar nada,
aliás, não sei como fazer o que o senhor está querendo, mesmo porque, a
ofendida fui eu, quem deveria retratar-se era o senhor advogado e não eu. Se ele é velho, se é moco, deve parar de
advogar e não ficar contando com a benevolência e educação dos Juízes, que não
tem tempo a perder nem com ele e nem com qualquer outro. Temos de respeitá-los,
mas temos de ter respeito também. Pela
idade ele já deveria saber como se comportar, etc. etc. etc.
- Doutora, vamos acabar com isto:
vamos fazer esta retratação e o processo acaba, inclusive.
- Não Sr. Presidente, prefiro ser
julgada, até porque ninguém que tenha o mínimo de discernimento, vai fazer
qualquer coisa contra a minha pessoa. Estou certa, mas há uma coisa que o
senhor pode fazer, e se o senhor fizer eu até peço desculpas ao doutor.
- Sim doutora, o que é.
- É o seguinte. O senhor pega
aquele velho, segura ele pelos dois braços, eu dou um belo pontapé no dele, e
aí eu me retrato, não só com ele, mas, também, comigo mesmo, pois vou lavar a
minha alma.
Como é que doutora?
- É isto mesmo que o senhor
ouviu. O seu pedido é tão absurdo quanto
o meu, portanto...
Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk,
tá dispensada doutora.
E ela saiu da sala ao som da
gargalhada do então Presidente.
Quando chegou na recepção, olhos
atentos e curiosos aguardavam-na, porque todos já sabiam qual era o assunto a
tratar, menos ela claro.
- E aí doutora? Como foi a
conversa? O que a senhora falou para ele dar esta risada tamanha, quando nós pensávamos
que a senhora ia sair daí arrasada.
- Entre na sala e pergunte a ele.
Alguns, efetivamente, souberam da
conversa, que serviu, durante algum tempo, de motivo de risos e de, mais uma
vez, ela ser tachada de maluca: mas, como tudo,
o incidente foi esquecido e a representação arquivada, se querem saber.
Agradece ao Sr. Presidente. Vá em
Paz para o lugar que Deus reservou para si.
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