quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

DAMIANA - Uma lembrança


Conheci Damiana quando eu era ainda criança. Criança mesmo, acho que não tinha quatro anos de idade. Damiana era uma negra imensa, devia ter um metro e oitenta, sua pele não era negra, era mais para o pardo. Ela tinha aquelas manchas marrons na pele, que dava para ser notadas.
Damiana tinha o cabelo enorme, mas somente uma vez o vi solto, isto porque nas artes de criança, desavisadamente, entrei no seu quarto. O cabelo era cheio e enorme.  Isto aconteceu quando eu já tinha bem uns oito anos.
Quando Damiana entrou na minha vida eu era uma criança mesmo e ela já me parecia ser uma velha, não que fosse mesmo, possivelmente era teria uns trinta e cinco anos, acho eu, pois sequer posso avaliar a idade dela,
Ela sempre estava limpíssima e de avental, os cabelos presos em dois cocós um de cada lado. O cabelo era repartido no meio em uma precisão sem igual, a gente conseguia seguir aquela linha divisória entre um lado e outro, da testa até a nuca, parecia mais uma cicatriz.
Não me lembro de ver Damiana sorrir, sei que ela usava dentadura, mas não me recordo mesmo de vê-la sorrindo. Via a sua vida costumeira. Limpar casa, lavar roupa (na mão), encerar o chão, limpar cozinha, banheiros, etc.  Ela vivia na casa de umas tias minhas ali no Canela. Se bem me lembro ela dormia na parte do subsolo da casa, para o quintal, onde existia e frutas, que ela, Damiana, cuidava.
Nunca vi ninguém procurando Damiana, ninguém da sua família. Nunca soube de onde veio, quem eram seus pais, enfim, nunca soube nada dela, a não ser que ela fazia parte da casa, quase que como um objeto móvel e que obedecia ordens e sabia cumprir as suas obrigações, sem nunca reclamar, sem falar, quase sem ouvir.
Sei que ela gostava de minha mãe, talvez porque tinham uma coisa em comum, eram pobres e conversavam quando se viam. Aliás minha mãe fazia questão de ir vê-la no seu quarto se ela não estivesse decorando algum lugar da casa esperando a ordem de alguém.
Da última vez que a vi ela já estava com cabelos brancos, mas continuava na labuta, depois não tive mais notícias, a não ser que ela tinha morrido.
Hoje me pergunto: Quem era aquela mulher? De onde veio? Quais os seus anseios? Quais os seus sonhos? Será que teve, algum dia, um namorado? Será que queria ter filhos? Enfim, fico a me perguntar se Damiana um dia foi feliz, ou se para ela a felicidade era aquela vida.
Queria saber da sua história, mas hoje, infelizmente, não há ninguém para contá-la. Meus tios, a quem ela servia, todos eles, já faleceram.  
Será que um dia Damiana mostrou o seu corpo a alguém.  Eu achava que ela não tinha peito, porque sempre a vi de vestido de um tipo que cobria tudo, aliás não sei como ela conseguia trabalhar com aquela roupa, sempre vestido cinturados, de mangas, algumas vezes com o detalhe de um rolo na gola. O comprimento do vestido fazia a gente pensar que ela não tinha coxa, sempre no meio da perna.
Será que Damiana conheceu o mar? Algum dia ela foi à praia?  Será que saia de casa aos domingos pela tarde? Será que tinha folgas? Como poder conceber alguém que não conheça o mar? Todavia, acho que ela não o conheceu
Realmente hoje, e só hoje, é que vi a inutilidade da vida de uma pessoa, que apenas serviu a outrem durante toda a sua vida. Quando digo inutilidade de vida, falo da vida pessoal, do seu querer, dos seus sonhos. Talvez por não os ter, ou por não poder realizá-los, é que Damiana era taciturna, quieta, de fala mansa.
Espero Damiana, que hoje, onde você estiver, esteja feliz e que a sua v ida seja bem diferente daquela que conheci.

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