domingo, 1 de julho de 2012

As Legítimas


A minha era de tiras amarelas, aliás, eu acho que antigamente todas elas eram amarelas ou talvez verdes, não sei, eram de tiras bem mais grossas que as atuais e tinham um solado também muito grosso, bem diferente do de hoje. Todos nós, lá em casa, tínhamos uma e ela tinha de durar muito tempo, ficavam finas no calcanhar e embaixo do dedão. Se quebravam as tiras ou os pinos que seguravam as tiras ao solado era uma merda, porque não podíamos comprar outras, então o negócio era improvisar. Usei muitas vezes a minha com grampos enfiados na tira para que esta se sustentasse no solado; o diabo era quando, por algum motivo, o grampo, ou o material que fosse, resolvia enganchar em alguma coisa, ou então, se envergar e sair com tira e tudo pelo buraco e terminava por machucar o pé.
Antes era usada apenas para ficar em casa, quando muito ir até a praia, depois ela foi evoluindo. Lá em casa ela servia para muitas coisas, desde a sua função primordial que era proteger os pés, até de substituição ao cinto. Já tomei grandes sandalhadas, até eu mesma, na única vez que dei  uma palmada em meu filho, o fiz com ela,  fui tão violenta que os gominhos da miserável ficaram na perna da  criança.
Lá em casa éramos muito, e de diversas idades e tamanhos, e, consequentemente, os nossos calçados eram de tamanho diversos, o que não impedia que, como todo pé de pobre, calcássemos o sapato uns dos outros. Pé de pobre é eclético mesmo: se você usa 36 e tem de ir a uma festa e sua melhor amiga, ou a sua irmã mais velha, ou ainda algum parente, tinha um sapato 35 ou 37 até 39, você usava qualquer um, depois ficava com os pés lenhados; se o numero fosse menor, ele ficava cheio de bolhas de água que se solidificam e viravam quase ossos: o meu calcanhar que o diga! Se os sapatos são maiores, apesar de não apertarem  como é lógico, fazem pior: formam calos da mesma maneira, porque o roçar do pé entrando e saindo do sapato,  fere a pele sensível dos pés, e o resultado é desastroso, depois você tem que segurar o sapato com o rosto do pé, se o desgraçado é alto, aí é que a porra pega, porque você tem de segurar ele para ele não sair do pé e equilibrar-se em cima do miserável, resultado, dor  em todas as partes do corpo, não pensem que é só no pé; a panturrilha, coitadinha, fica em frangalhos, acho que tenho a  minha bem grossa mesmo devido a este exercício praticado muitas vezes na juventude. Lembro que na minha formatura usei uma sandália de uma amiga minha cujo número era 38, e como era aberta eu tinha o tempo todo de estar ajeitando o pé para diminuir o espaço entre os dedos e o começo da sandália, que sempre tava sobrando.
Pois é, os sapatos lá em casa também podiam passar de pai para filhos, ou de irmão para irmãos e aí, outro problema, você pegava o bicho já todo arregaçado e com chulé (ou será xulé? Em qualquer uma das grafias, a primeira é a correta, vai feder) e era obrigado a calçar aquela porcaria, não tinha outra maneira.  E quando  os parentes mais ricos resolviam fazer doações e davam sapatos lindos, mas que não cabiam nos nossos pés, ou se coubessem, também causavam danos, porque não estávamos acostumados; as mulheres a usar sapatos  de saltinho e de bico finíssimo, e os homens  sapatos sem cadarço.
Lembro-me do meu “vulcabrás colegial” que, juntamente com a blusa “volta ao mundo”, tinham que acompanhar o meu crescimento, porque eles tinham de durar,  minimamente, um ano; o sapato, pelo gosto de minha mãe, deveria  durar eternamente,  acho que ela pensava que tiraríamos o ginásio com ele.  O “vulcabrás”, no último ano do meu curso, já tinha promissores furos, que deixavam em liberdade limitada alguns dedos, o mindinho quase totalmente de fora, na altura tínhamos de usar meia preta para disfarçar. O solado! Ah o solado!  Não podíamos  suspender os pés de maneira alguma, para que ninguém  observasse os buracos na sola. Todavia os heroicos sapatos “vulcabrás” não me deixaram ter os pés arrebentados nas quadras de vôlei e de outros esportes na escola, que eram quadras rugosas, quando a gente caia na quadra se ralava toda, tomei muitas broncas por ter rasgado “n” vezes a minha fedorenta “volta ao mundo”. Oh paninho miserável! A gente suava e o suor impregnava a porrra da blusa, e olhe que não adiantava lavar, porque o cheiro horrível daquele tecido era mesmo uma porcaria. E a mancha que se formava embaixo do braço! Que miséria! A gente ficando mocinha, eu e a minha irmã, sem dinheiro para o desodorante ou perfume, e aquela blusa horrorosa, mal cheirosa, ali, acompanhando a nossa vida por longos 4 anos.
Bom mas tudo isto passou, não sei se existe mais o tecido da blusa “volta ao mundo”, deve existir até coisa bem pior, os sintéticos estão aí; também não sei se ainda existe o sapato vulcabrás, certamente há alguma zorra similar feita na China, mas as “legítimas” são imbatíveis. Agora tenho de todas as cores, dourada, azul de vários tons, verde, branca, bege, ainda compro um lilás, acho linda, vários desenhos na sola, com tiras no calcanhar, com tiras enviesadas, com tiras no dedinho, enfim, elas evoluíram, estão mais delicadas e agora já vão para qualquer lugar, aliás, virou uma epidemia, uma moda de jovens e velhos e bebês, adoro ver criancinhas com as sandálias pequeninas, acho interessante como eles conseguem segurá-las nos pés.
Tem algumas pessoas, entretanto, que nunca deveriam calça-las, porque não sabem andar com elas; meu pai era uma dessas pessoas, como não sabia andar com a sandália, para segurá-la nos pés, ele colocava todos os dedos bem para frente, resultado, um caos, os dedos ficavam passando do solado e arrastando no chão, uma coisa mesmo feia. Um dia meu pai, que era um espanhol daqueles meio brabos, resolveu que ia pegar eu e o meu irmão para dar uma sova, para evitarmos isto subimos numa árvore e ele foi atrás, resultado: ele não tirou a sandália e tomou uma queda da porra. Conclusão: a surra foi bem maior quando descemos da árvore, a raiva tinha crescido com a queda.
Minha mãe, por outro lado, nunca usou uma sandália desta, nunca mesmo, ela não gostava de sandália que ela identificava como “de pauzinho no dedo”.
Já perceberam do que eu estou falando não é? É da “legítima havaiana” que me acompanha, aproximadamente, há uns 48 anos, e é tão famosa e internacional agora, que da última vez que entrei em Portugal o homem da fiscalização abriu minha mala e me perguntou quantas “havaianas” eu estava levando, pensem aí!  Eu descaminhando havaianas!!!!!!
Um aviso, não tenha imitações, comprem as “legítimas”.

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