sexta-feira, 11 de abril de 2014

Do resto sei eu

O dia amanheceu, acordou muito cedo. Chovia do lado de fora, ouvia o som da chuva  caindo no chão. Começou a pensar o que faria durante o dia: levantaria, tomaria uma “Douche” quentinha, arrumaria o quarto, daria uma lida em algumas páginas de um livro qualquer, aliás, o que não faltava no espaço era livro para ler. Depois tomaria um  suco  mudaria a roupa e  iria, como sempre, dar um passeio na Baixa. Não tinha nada para fazer na faculdade hoje, portanto, o melhor seria mesmo um passeio  no Chiado, esperando as horas passarem para  comer, lá no seu David (Merendinha do Arco), o cozido à portuguesa, afinal, era quinta feira.
Depois do cozido, e após algumas bagaceiras(aguardante portuguesa), sairia 
andando pelas ruas de Lisboa. Talvez fosse para o lado de Alfama, quem sabe iria ao Bairro Alto, Santa Catarina, Estrela, tinha ainda a opção de seguir andando até o Cais do Sodré e de lá, dependendo do tempo, pegar um comboio e ir até Cascais olhar o mar. Sim, faria isto mesmo.
Espreguiçando-se, tentando  esticar ao máximo o corpo que amanhecera bem encolhido, deve ter tido algum sonho que a fez tremer, ou então havia feito frio à noite, o certo é que  amanheceu toda encolhidinha.
A chuva engrossara, o ruído era mais forte agora,  mas ela continuava no firme próposito de fazer  o que planejara, mas sair da cama com  aquela  zoadinha da chuva e o aconhego do quarto estava dificl. Olha o relogio e levanta de sobressalto: 11 horas da manhã! Metade dos seus planos  por água à baixo, agora teria de se apressar, porque a camioneta  a (7) passaria as 11:30 e se perdesse esta teria de pegar a (13) e quase uma hora para chegar no centro de Lisboa.  
Levantou-se de um salto, resultado: quase quebra a cara, porque dormira no chão da sala, literalmente no chão, deve ter pego no sono vendo algum programa de televisão e  pronto, a noite inteira no chão, em cima, apenas de uma toalha, portanto o  corpo se apresentava dolorido pela dureza do chão. O pescoço doia porque  dormira  com as almofadas, ao invés do travesseiro.
Que droga! Brada ela, notando que  todos os seus planos anteriores estavam em um sonho, que  como todo sonho, se desfez. Quase chora ao ver a realidade que a esperava  naquele dia, igual a tantos outros, com apenas uma diferença, estava um dia mais velha e não gostava nada disto, a velhice chegara, inevitavelmente, mas não estava fácil aceitar as rugas, as limitações, as taxas altas a cada exame.
Decidiu, entretanto, que daria asas a sua imaginação e continuaria, acordada, o sonho  que tivera com a sua amada Lisboa, e pôs-se a recordar de pessoas, lugares, cheiros, gostos. Colocou o disco da Carminho e ouviu “Bom dia amor, dizem as rosas da janela ao ver o sol nascer”. A música lhe alegrou, lembrou mesmo dos bons dias que dava ao tempo, sim ao tempo, ao acordar e abrir o store do quarto da casa onde vivia em Carnaxide e olhar, ao longe, mas completamente identificável o Tejo, ja se esvaindo  no oceano. De sua janela via o marco divisório de onde um termina e o outro começa. Tejo e Oceano Atlântico, águas que marcaram, por longos oito anos, a sua vida. O Tejo dono da sua intimidade, conselheiro amigo sempre atento e disposto a ajudar e dissipar as suas dúvidas, aflições, tristezas. O Atlântico povoando os seus sonhos, estabelecendo ligações, não deixando que as suas origens fossem esquecidas. Ela era de lá, de onde o olho não podia alcançar, sim, de lá do outro lado do Atlântico, e mais uma vez Carminho lhe faz recordar de tantos momentos bons passados ali, numa solidão que ela gostava de ter e sentir, solidão que só dividia, exatamente, com o Tejo e com o Atlântico.  “O Sal das minhas lágrimas de amor criou o mar  que existe entre nos dois para nos unir e separar[...] [..] meu bem sempre  que ouvires um lamento crescer desolador na voz do vento,sou eu em solidão  pensando em ti, chorando todo o tempo que perdi[..]”  A música é linda, a história de amor envolvente, e a saudade era a dela, embora em ordem invertida e  o ocenao marcando a separação. Sim, a música da Carminho vai tomando conta de  si, entrando pelos poros e ela se vê à frente do Tejo, bem ali onde ele caminha mais rápido para encontrar o seu amigo que o levará para outras paragens, onde ele se mistura  com outras águas para encontrar o o mundo, conhecer lugares, revigorar terras, presenciar amores, consolar desamores e dissabores. Lágrimas  salgadas  correm pelo seu rosto, ela não está triste, está  apenas saudosa, mas sabe, perfeitamente, que esta saudade jamais terá cura, pois sempre, sempre mesmo, ainda que alguns digam que nunca se deve dizer nunca e nem sempre, ela sentirá. O Tejo lhe faz muita falta, e não só ele,  Lisboa  com as suas peculiaridades, tantos as boas quantos as ruins.  Viveu uma liberdade naquela cidade que sabe jamais retornará.
Limpa o rosto e  continua lembrando de detalhes: Zara, Rua Augusta, Chiado, Fenac, El Corte inglês. Ajuda, Belém, Algés, Carnaxide, Queluz. Sintra, Paço Darcos, Caxias, Carcavelos, Oeiras, Estoril, Cascais.Mercado da Ribeira, tantos lugares, tantas sensações, tantas descobertas.  Como era bom  sentir o trem ir parando  no final da linha em  Cascais, onde ela ja chegava feliz  pelo que vinha vendo desde o Cais do Sodre, de onde o comboio partia com destino a esta elegante e charmosa vila. Lembra da Vera a lhe dizer que a Zara lhe devia contratar como garota propaganda
 Carminho lhe traz de volta à Lisboa, “ Lisboa se amas o Tejo, como não amas ninguém, perdoa num longo beijo os caprichos que ele tem, faço isto ao meu amor, quando aparece zangado[...) tu também és rapariga, tu também es cantadeira, vale mais uma cantiga,cantada à sua maneira”.  Gosta da alusão que a letra faz  quando  diz que o Tejo de dia veste o pijama do sol.  Se vê sentada  no paredão  do Cais Sodré,  sozinha no meio de tantos, olhando  o Tejo e o outro lado dele, Cacilhas. O  seu olhar se perde e com ele todas as dores do dia, do tempo, da vida. Sim, o Tejo era assim para ela, uma mirada, e o brilho do seu olhar retornava, e com ele a esperança do dia seguinte melhor com grandes e  agradáveis surpresas.
“Porque  reclamas de mim se sou assim como tu és. Barco perdido no mar que anda a bailar com as marés, tu ja sabias que tinha um queixume do mesmo ciíume que sempre embalei, tu ja sabias que amavas deverás,também quem tu eras confesso não sei. Não sei quem és nem quero saber, errei talvez, mas que hei-de eu fazer?A tal paixão que jamais findará,-- Pura ilusão! --Ninguém sabe onde está! Dos dois, diz  lá o que mais sofreu! Diz lá que o resto sei eu! P'ra que me queixo eu também Do teu desdém que me queimou. Se é eu queixar-me afinal dum temporal que já passou? Tu nem calculas as mágoas expressas e a quantas promessas calámos a voz!Tu nem calculas as bocas que riam e quantas podiam queixar-se de nós! Não sei  quem és nem quero saber, errei talvez, mas que hei-de eu fazer? A tal paixão que jamais findará,-- Pura ilusão! --Ninguém sabe onde está! Dos dois, diz  lá o que mais sofreu! Diz, que o resto sei eu.”
Pois é, vai ficar por aqui,  porque  a saudade é mesmo imensa e, no mais, como na múscia, do resto sabe ela.    


quarta-feira, 9 de abril de 2014

Querido amigo

Praça do Comércio-Lisboa
Já lá se vão quase seis meses que não nos vemos, estou para lá de saudosa, no entanto, já estou fazendo planos de te ver. Logo logo estarei aí com você, e espero que você tenha se guardado um pouco e possa deixar que eu te faça companhia em alguns passeios que quero fazer com você e junto a você. 
Restaurante Farol
Bom, em principio, para que você não fique muito cansado, e fique olhando o seu Tejo amado, que tal um almoço no Restaurante Farol, lá em Cacilhas? Lembra daquele prato de peixe que você tanto aprecia? Eu como o salmão, o polvo, a lula e você come o restante dos outros peixes. Se preferir, a gente come bacalhau a farol, não tem problema nenhum. Ah! Você não quer atravessar o Tejo? Quer ficar por este lado mesmo? Bem então vamos abrir um pouco mão do Tejo e vamos, ou no Seu David (Merendinha do Arco), no Zé da Mouraria, ou ainda, no Baleal, na Rua da Madalena, sei que você vai adorar, como sempre, é a sua vida, é a sua terra, é a sua comida, enfim, é você.
Sim, mas quando chegar, não quero somente sair de dia, quero andar pela noite, sentir frio, o arrepio na pele, mas quero estar junto com você, que é um notívago, eu já sei disto, quem não é, na verdade, sou eu, mas só para te ver junto à sua companheira, que vai estar radiante, toda linda e toda iluminada, ainda com os resquícios do natal, faço qualquer negócio. Podemos ir às Docas, tomar uns drinks no Irish, dançar em alguma discoteca, se preferir uma coisa mais calma, que tal irmos naquele bar-restaurante-boite que inauguraram ali pertinho do Tejo, antes de chegar a Santos?  Se você preferir podemos ir ao Pagode Chinês, ou ficar de bobeira em qualquer dos restaurantes da Porta de Santo Antão, a gente segura só o frio.
Olhe amigo, eu já tô ficando nervosa, contando os momentos, os dias, enfim.
Cascais
Baía de Cascais
Mas se prepare, quero uma maratona mesmo: No dia seguinte, vou poder lhe dispensar um pouco, caso você não queira me acompanhar na viagem de comboio, o que acho difícil, quando chego aí ficamos inseparáveis, porque vou a Cascais de qualquer maneira, mesmo você me dizendo que tá chovendo e fazendo frio. Não me importo: o que quero é ver a Baía de Cascais toda aberta para mim, tempo nublado ou não, posso ficar dentro de algum restaurante olhando a chuva cair através dos vidros, quem sabe vejo alguém, como já aconteceu, mais louco de que eu, nadando naquelas águas? O certo é que vou, passarei em todos os cantos onde costumo passar, até porque, com certeza, terei de ir ao Banco do Brasil tirar dinheiro, e aí aproveito para tomar um vinho se tiver muito frio, caso contrário, tomo um mojito ali sentadinha olhando tantos que, como eu, não se amedontram com o mau tempo.
Vou subir as escadinhas e vou olhar aquela arcada maravilhosa, as escadinhas limpas que levam até aquela praça da Igreja, vou subindo devagarzinho, olhando cada reentrância, porque nunca se pode perder a oportunidade de ver a Baía de Cascais em quadradinhos pequeninos, para depois juntá-los todos e ver tudo se transformar no infinito, que é como ela vai se apresentar quando chegarmos lá no topo e alcançarmos o forte.
Quero te dizer, que se não estiver chovendo muito, porque se tiver com pouca chuva, eu desço mesmo, vou descer aquela ladeira maravilhosa, aquela que tem as palmeiras na lateral e vou ver se desencanto aquele restaurante que fica em frente ao mar; parece brincadeira, tem 7 anos que programo esta visita, desta vez não passa, vou de qualquer maneira.
Pois é, mas vai ficar tarde, e tenho de voltar, mas o dia seguinte é domingo e aí eu vou fazer o que gosto que é andar pelo parque das nações: primeiro vou ao shopping Vasco da Gama, claro que me aborrecerei um pouco, porque vou ver coisas lindas e não vou poder comprar, mas não deixarei de passar por dentro do shopping de maneira alguma. Irei cedo, isto é, lá pelas 12:00 que é para dar tempo de, antes de almoçar no Sr Peixe, dar umas voltas por ali. Tomara que o Cuba Libre tenha reaberto, se isto tiver acontecido tudo vai estar perfeito, do contrário, darei um jeito; lugar para tomar mojito é que não falta.
Depois disso, claro, tenho de voltar à vida normal, o que é muito difícil para mim, porque ter a sua companhia nunca é uma normalidade, é sempre uma coisa excepcional, pois você tem muitas surpresas, a cada hora que você decide se mostrar para mim eu fico mais e mais encantada. Bem, mas dentro da normalidade tenho de ir à faculdade. Quanta saudade! Você pode não acreditar, mas o que sinto falta daquela biblioteca da Faculdade de Direito, você não crê? Agora então, que decidi que vou bisbilhotar Angola e a Justiça ali aplicada, vou ter que passar muito tempo lá, o que adoro. Depois, vou me perder em alguns dos corredores da Faculdade de Letras, outro dia fiquei com uma neura danada achando que não ia conseguir  achar o caminho da saída, já nem sei se volto àquele mesmo lugar, onde tinha o centro de estudos africanos, esconderam tanto o bichinho que quase ninguém o encontrava e se o encontrasse, também não achava o caminho de volta, só cheguei lá porque fui com uma funcionaria.
Depois, quando me cansar, o que não é muito provável, vou aportar na Sociedade de Geografia, para muitos mergulhos na Angola colonial, ah se vou! Este negócio de ser doutora é muito interessante, a gente nunca se satisfaz com o que já fez, quer sempre mais.
Mesmo na normalidade, não vou deixar de descer o parque Eduardo VI, ou VII, não sei bem, também não interessa, nem tampouco a Avenida da Liberdade, sem me cansar de apreciar a nossa bela estação do Rossio, onde vou tomar o trem para Sintra, pois, estou também com saudades daquele lugar.
Marina de Figueira da Foz
Se o dinheiro aparecer, ou melhor, se sobrar algum, juro a você que vou a Guimarães, Bragança e Chaves, deveria ter feito isto quando fui até Viana, mas nunca é tarde. Se não puder, eu vou, mesmo com o tempo feio, retornar à Figueira da Foz, Aveiro porque quero ir até Ilhavo, de preferência no festival do bacalhau, Espinho, e tantos outros lugares, quem sabe, se ficar aí até a Páscoa possa repetir o passeio pelo D`ouro, e desta vez possa  arrumar um “parceiro” daqueles, espero, entretanto, não provar tanto vinho para não correr o risco de  cantar, outra vez, com algum casal de espanhol mais louco de que eu, La luna Y el Toro dentro do comboio, machucando os ouvidos da aristocracia portuguesa.
Lisboa - Tejo
É meu amigo, quanta coisa tenho para contar de você e eu, quanta cumplicidade, quanto companheirismo. Sei que você esta cheio de dificuldades, atolado em dívidas, tratando mal os seus para tentar sair do buraco que este negócio da “união” lhe colocou, bem como outros  parceiros que dela fazem parte, (os mais pobres claro), mas nada disto me faz deixar de gostar de você, de acreditar que você vai sair desta da melhor maneira possível, e vai se mostrar, como sempre foi, lindo e formoso para tantos quantos possam chegar até você, para você se amostrar, começando por  mostrar  a sua querida e enamorada esposa, aquela que realmente abre os braços para quem vem do outro lado do Atlântico, e da qual você tem um grande ciúme, mas não se preocupe que ninguém vai  fazer mal à tão linda criatura, a gente só quer admirá-la, amá-la, ver o seu rival, o Tejo, este sim, poderoso, mas você que também  o acolhe, é maior de que este sentimento mesquinho de rivalidade, de ciúme, porque você é grande e sempre vai sê-lo, ainda que muitos digam o contrário.
Até breve.

terça-feira, 8 de abril de 2014

A gostosona da Academia

Como de costume ás terças e quintas feiras acordou mais cedo; era dia de ginástica. Seguindo a moda academia, vestiu a calça colada no corpo, o bustiê e uma camisa, também colada ao corpo, mais apertada. Hoje não iria de macacão colado, iria assim, era um novo modelito, ainda não conhecido pelos colegas de academia.  Ela se sabia uma mulher interessante. Sem ser alta, mas com uma boa altura, com o corpo bem delineado. Tinha um orgulho da porra da bunda dura que, torneada, era muito bem valorizada pelas calças coladas no corpo. A bunda, especificamente ela, era o que chamava atenção mesmo, tanto de homem, quanto de mulheres; as mulheres com inveja, os homens com tesão. Tinha malandro que fazia questão de ficar bem atrás dela, assim a oportunidade de “comer com os olhos” era bem maior. Sim, porque ela era casada e, em princípio, os colegas só poderiam comê-la com os olhos.

terça-feira, 1 de abril de 2014

O vaso de murano

De onde está pode ver o vaso azul que comprou em Veneza. É um pequeno murano, uma miniatura daquele que povoou os seus sonhos desde os sete anos. Sim, é verdade, na casa de um seu tio rico tinha alguns vasos de murano: azuis, verdes, um colossal salmão. Os vasos ficaram para sempre em seu subconsciente.  Aliás, aquela casa tinha coisas que ela lembra até hoje e por elas  podia avaliar a fartura, riqueza da época áurea em que seus tios viveram. Havia quadros de famosos, Mulatas de Di Cavalcanti,  um enorme na sala com uma índia  que não se lembra de quem era, e muitos outros. Na lateral, subindo a escada havia um quadro lindo, mas era uma paisagem.  Dentro do gabinete mais um também com indígenas, salvo engano,o fundo do quadro era rosa. O gabinete! Ficava encantada com aquele canto da casa que não era muito freqüentado pela criançada; vivia trancado, afinal aquele era o lugar dos negócios e as crianças não podiam entrar. A escada de mármore, que conduzia ao andar dos quartos, era linda, o mármore branquinho era areado, quase que diariamente, pelas empregadas da casa. Recorda-se que era areado com pasta cristal, aquela rosinha.  Acabada a escada alcançava-se um hall onde se podia ver  cinco portas. Quatro quartos e o banheiro. Quatro quartos!  Aquilo era o máximo, quatro quartos e um somente para costura. Acreditem se quiserem: as famílias abastadas tinham costureiras particulares à sua disposição. Do lado esquerdo, após o quarto da costura, ficava o quarto das duas filhas do casal.  Chic! Muito chic mesmo.  Camas, guarda roupa, penteadeira, cômoda, tudo igual, era o máximo da arrumação. As colchas completavam o cenário e elas combinavam com as cortinas. A penteadeira tinha duas abas que podiam ser deslocadas para permitir que os utentes visualizassem as costas, os cabelos. A porta de frente era o banheiro, o qual mais parecia uma outra casa de tão grande que era, possivelmente hoje seria o tamanho de um loft, kitinete, quarto sala, sabe-se lá.  Do lado direito da escada mais duas portas, o do quarto dos meninos e a do casal.
O quarto do casal era uma coisa à parte mesmo.  Era enorme, tinha uma espécie de ante sala com poltronas, uma mesinha e, logo após grandes guarda roupas que tomavam as paredes de todos os dois lados, num outro vão ficava a cama de casal. Nunca tinha visto uma cama de casal daquele tamanho, era enorme mesmo. Ficava solta naquele vão enorme, mas era tão grande que não se notava que ela reinava sozinha ali. No lado esquerdo uma porta e aí a grande vedete, o banheiro. Imaginem vocês, há 52 ou 53 anos atrás ela viu a primeira suíte da sua vida, suíte com direito a banheira e tudo mais, a louça decorada era o máximo, havia flores azuis na pia, no vaso, na banheira, Ela ficava encantada com tudo aquilo. A cama, que algumas vezes ajudou sua mãe a arrumar, estava sempre impecável, guarnecida com colchas floridas e travesseiros e um rolo enorme, que fazia com que os travesseiros fossem colocados quase em posição vertical, o que dava um toque de elegância à cama. Uma porta lateral abria-se para a varanda que dava para a rua onde a casa estava localizada.
No andar térreo somente uma sala imensa, que abrigava a sala de visitas, então assim chamada, e a sala de jantar, onde uma imponente mesa com doze cadeiras e tampo de vidro trabalhado adornavam o ambiente. No centro daquela mesa, uma fruteira de cristal toda rebuscada e de três andares, que estavam sempre com frutas lindas e frescas.  No enorme móvel, que ficava na parede que fazia divisória com a cozinha, um relógio de pé insistia em marcar o tempo, parecia sempre estar disposto a dizer que tudo aquilo tinha um tempo certo, era preciso cuidado.
Um móvel menor, mais alto, era um bar, ali tinha muitas bebidas sempre. Eram duas portas mais altas de que a do móvel grande, porque este tinha gavetas e o bar não. Mais adiante, a cristaleira onde eram colocados os cristais, e olhe que eram muitos e lindos. Ela ficava extasiada  frente àquilo tudo.
Plantas ornamentais eram espalhadas pela casa, na subida da escada, em um pequeno pedestal de mármore, havia um feto, enorme e verde, lindo. À noite ele saia dali para tomar o ar e o sereno no jardim, ao amanhecer, antes mesmo dos donos da casa descerem, ele já estava no seu lugar de costume.
A cozinha era gigantesca.  Toda cheia de armários, tudo combinado: fogão no lugar certo, duas geladeiras nos seus lugares, duas pias.  Ela ficava olhando aquilo tudo com um misto de curiosidade, espanto, inveja. Na sua casa não tinha nada disto, muito pelo contrário, na sua casa se lavava pratos em bacias, o banho era em bacias imensas para que a água fosse aproveitada para o proximo banhista ou para jogar no sanitário. Depois da cozinha varandas, varandas imensas, uma espécie de copa avarandada onde outra mesa, com muitos lugares, servia para as refeições intimas  da família.
Pela manhã a mesa estava sempre arrumada: frutas, pão, aipim, inhame, batata doce, mingau de aveia, cuscuz, leite, café, banana da terra cozida, jámon, queijos, ovos dentre outras coisas.  Era realmente farta aquela casa. A dona da casa descia de roupão, ela não fazia nada, portanto, quando o “patrão” saísse ela voltaria para os aposentos, talvez para dormir ou  encontrar a roupa adequada para o evento do dia: eles tinham muitos compromissos. O “patrão”  foi diretor de hospital, presidente da associação comercial, presidente de clube recreativo e muitas outras coisas. Ela o acompanhava nessas ocasiões.
A varanda de entrada tinha cadeiras e poltronas de madeiras, ela sempre gostou daquelas poltronas, eram largas e fundas e quem era pequeno, como ela, ficava com as pernas balançando no ar e toda recostada no fundo da cadeira, era uma grande dificuldade para sair. No jardim, muito bem cuidado, plantas variadas, roseiras, samambais, palmeiras,  bananeira de jardim. Na parte lateral da casa a continuação do jardim lhavia a um viveiro de pássaros, era uma gaiola gigante, com muitas aves lindas: periquitos de cores várias, e outros pássaros que não lembra o nome.  O papagaio ficava em uma gaiola solitária na varanda perto da cozinha, de onde via tudo e falava tudo que conseguisse captar. Havia, também, um áquario com peixinhos coloridos, que fazia uma espécie de fosso embaixo do local onde onde estava colocada a enorme gaiola, como se fosse para dificultar os passários de saírem, como se isto fosse possível.
Havia um subsolo, sim havia. Ali era a área de serviço e o dormitório dos empregados. Um vão enorme com camas colocadas uma ao lado da outra. Sempre que descia ali via as camas rigorosamente arrumadas, tudo no seu devido lugar. Se a patroa não se dignava a descer ali, a sua governanta não deixava a peteca cair. Mais abaixo, uma pequena roça, uma horta e mais dependências de empregado, agora dos homens.
Tudo perfeito e deslumbrante para ela, que se encantava como carro que havia na casa, um só não, lembra que havia dois. Um era um automóvel lindo, lembra que o carro era verde, tinha uma frente ampla, mas não tinha fundo comprido, era batido no fundo, por dentro o painel era todo de madeira, com aquela marcha que ficava na lateral do volante imenso. O Outro carro era uma espécie de caminhonete, mas toda fechada e parecia que tudo era de madeira. Nesse último carro, porque era maior, fez alguns passeios.
Sim, lembra destes detalhes todos; outros existiram, mas o tempo passou e ela esqueceu, no entanto, um deles ela jamais esquecerá, tanto que, quando foi a Veneza  comprou uma miniatura  do belo vaso de murano que ficava na sala em cima de um dos móveis. Queria o verde, não havia, isto é, não no preço que poderia comprar e do tamanho que poderia  levar, mas sim o azul, que a fez lembrar de tantos detalhes, retornando a um tempo em que  os ricos achavam que sempre o seriam, que ostentavam sua riqueza como se ela fosse perene, em que se gastava sem se pensar no amanhã, em que muitas mulheres  apenas se preocupavam em achar um bom partido para continuarem com a vida que tinham dentro da casa dos pais. O tempo passou, as condições mudaram; os muranos se foram, as telas desapareceram, o mármore das escadas, se ainda existe, é pisado por outrem . O patrão morreu, a patroa resiste, já viu os seus dois filhos homens falecerem, vive com uma das filhas, que não encontrou nenhum bom partido, ambas solitárias sofrendo as suas dores interiores e, possivelmente, lembrando de um tempo que não voltará jamais, o tempo que aquele relógio de pé insistia em mostrar, mas que ninguém da casa prestou atenção.