sábado, 29 de maio de 2010

Não se marca compromisso da 2a quinta feira do ano

A roupa já está separada desde a noite anterior, na cadeira, ao lado da cama a calça ou bermuda branca, camiseta branca, tênis, a pochette ou sei lá o que, de preferência branco, com a carteira de identidade, algum dinheiro e, se tiver, o cartão da assistência médica.
Acorde cedo, afinal pode estar longe do local onde tudo vai acontecer. Banho tomado, garrafinha de uísque dentro do saco, siga para onde os baianos estão concentrados neste dia.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A BOA MORTE CELEBRAÇÃO DA LIBERDADE


Dia 15 de Agosto, Cachoeira- Cidade do Recôncavo  Bahiano,de muitas ligações com a história da independência da Bahia, bem como da escravidão e da resistência a esta própria escravidão.
A cidade está em festa. Pessoas de branco circulam na cidade, sobem e descem as suas ladeiras, tudo está tomado, não há espaços vazios. A ponte de ligação a Saõ Felix está em movimento, pessoas vem de lá para cá, neste momento só há uma direção: Cachoeira.
As cores se juntam num espetáculo multicor e multicultural. È o próprio sentido da festa que se mostra em sons, em cores, em integração. Um arco íris de "raças" e de línguas, que experimentam palavras diversas da de origem para, cada vez mais, ficarem em uníssono.

domingo, 23 de maio de 2010


Quarenta anos depois.
De repente estava ali; na sua frente, um homem bonito, cinqüentão, grisalho a lhe olhar muito, como se a conhecesse.
Ficou olhando para aquela pessoa, primeiro porque era realmente um homem bonito, segundo porque o olhar daquele cidadão não era de um homem qualquer, terceiro porque tinha quase certeza que já o tinha visto antes.
Bem verdade que não seria estranho, estava na sua terra, no seu ambiente, numa festa em que muitos do seu tempo ainda vão, portanto, poderia encontrar qualquer um dos seus antigos amores, admiradores, colegas, amigos, enfim.
Todavia, aquele olhar já estava deixando-a um pouco sem graça, até porque não estava sozinha, estava em companhia de dois conhecidos, que, por coincidência conheciam o homem. Mesmo depois que os dois companheiros se aproximaram e, sem deixar de ser olhada e olhar para aquela pessoa, ficou distante, esperando que os cumprimentos acabassem e os três, ela e os dois amigos continuassem a caminhada. Entretanto, um dos amigos lhe chamou: Ei! Venha cá, vamos tomar uma cerveja aqui com o nosso amigo!  Ela se aproximou mais um pouco, mesmo assim cautelosa, sabia que já tinha visto aquele rosto, mas não se lembrava onde e quando, e ficou preocupada de realmente conhecer aquela pessoa e não saber de onde, afinal é muito constrangedor alguém lhe conhecer e você, sequer, saber o seu nome.
O amigo que lhe chamou é um advogado em Salvador, e, por isso, achou que poderia ser um contemporâneo de faculdade, não tão próximo como os seus colegas de turma, mas um estudante de direito da sua época. Ledo engano! Antes mesmo que o seu companheiro de caminhada ao Bonfim acabasse a apresentação, o homem virou-se para ela e disse-lhe. Você não é fulana de tal? Você não fez direito e formou em advogada? Você não veraneava em Gameleira na Ilha?
Tomou um susto, mas de repente, a ficha caiu. Voltou no tempo e no espaço: Tinha apenas 17 anos quando conheceu aquele, então, rapaz bonito, embora agora o fosse mais ainda: os cabelos grisalhos lhe deram um grande charme, um plus em quem já era quase perfeito.  Devia ter, em 1972, uns vinte anos, era moreno, corpo musculado, tonificado, na linguagem de hoje, malhado. Pelo que se lembra era meio caladão, não se via esse rapaz no meio de todo mundo, ele sempre estava nos mesmos lugares que ela, mas sempre discreto. Olharam-se muitas vezes, mas parece que ele não tinha coragem de aproximar-se. A sua aproximação acabava em um "boa noite" mais próximo, nada mais.
Com o cidadão tocava violão, e nos idos de 70 o grande vício da juventude, pelo menos em Gameleira, era beber cachaça no coco, que era preparado antes, quando se fazia um buraquinho na casca do coco e colocava cachaça dentro dele, depois, vedava-se este buraquinho e enterrava-se o coco na areia e deixava-se lá por uns dois dias: a dificuldade era saber o lugar onde foi enterrado. Pense aí, muita gente fazendo a mesma coisa em um espaço  não muito grande. A confusão era grande na hora do desenterro. Às vezes tinha até porrada, outras vezes, frustrados, não se encontrava o próprio coco, algum sacana que tinha visto o enterro, promovia o levantamento antes e, adeus ao ópio. Junto com esta cachaça e, para mostrar uma cultura e modernidade, tocava-se violão: Vinicius, Tom Jobim, João Gilberto, Nara Leão, Chico Buarque. Isto quando o ópio ainda não estava a fazer um grande efeito, porque do meio para o fim já se cantava. Roberto Carlos, Golden Boys, Os Fevers, Renato e seus Blue Caps, Leno e Lilian e tantos outros. No auge da cachaça e da pureza dessas festas, hoje certamente apelidá-las-iam de "luaus" cantava-se "la bamba" e era a preferida: "para bailar la bamba se necessita una boca de gracia, una cosita, arriba oh arriba, asi seré, asi será, asi seré": Não estranhem, era assim mesmo ninguém sabia español e a letra era cantada como era entendida, percebida pelo cantador. Porra meu, era ótimo.
A ponte de Gameleira ouviu muitas vezes a música latina sem que identificasse em que língua era cantada.
Em um espaço mínimo de tempo, tudo isto veio à tona, minutos talvez, mas a recordação foi violenta, parecia um filme
Com toda esta reviravolta cerebral ela assentiu que era ela mesma, apertou-lhe a mão e disse-lhe exatamente que o estava reconhecendo, mas até chegar mais perto não o tinha identificado. Os dois companheiros que estavam perto ficaram parados observando o cumprimento dos dois, eles pareciam que, por segundos, esqueceram-se de que estavam com mais pessoas ao redor e que estavam numa festa de largo 40 anos depois.
Ele lhe perguntou se ela se lembrava da jangada que ficava atrás da barraca da ponte. Mais uma vez ela voltou à Gameleira e se viu à noite, na noite estrelada e linda, com apenas um lençol, deitada na jangada a olhar o céu, ouvindo o som do mar, protegida do vento e desfrutando de um espaço disputadíssimo, mas completamente democrático e respeitado: quem chegasse primeiro, com o seu lençol, alguns levavam até travesseiro, tomava posse do espaço e poderia ficar ali toda a noite, dormir e amanhecer como sol queimando o rosto, sem que ninguém incomodasse, perturbasse o sono e a tranqüilidade.  Ali se podia sonhar, namorar, conversar e, até mesmo, como ela fazia, dormir. Partilhou, muitas vezes, essa dormida com aquele rapaz, que nunca tentou lhe encostar um dedo. Dormiam os dois, ambos naquela jangada de quatro madeiras, juntos, porém separados, cada um com o seu sonho, cada um com a sua vontade, talvez uma só vontade, que era afastada pelo medo da conseqüência. Assim ficavam ali, deitados lado a lado, calados, olhando as estrelas, permitindo que elas partilhassem aquela intimidade não íntima, aquela doçura não demonstrada em gestos.
Sim ela voltou no tempo e, naquele momento, olhando o olhar daquele homem percebeu o tempo que ambos perderam por não terem, ao menos tentando, viver um romance, não um grande amor, talvez não estivessem para isto preparados, o momento do grande amor seria naquela hora em que se reencontraram, porque ali sabiam o que queriam e o porquê do querer.
Os dois, entretanto, estavam fadados ao desencontro, porque apesar do abraço apertado, da quentura dos corpos, desta vez, bem colados, seguiram os seus caminhos. Ela continuou andando para o Bonfim, ele se despedindo dos amigos, caminhou para o lado contrário. Uma coisa, entretanto, ficou patenteada com aquele encontro, o que muito bem foi resumido por um amigo que estava a lhe acompanhar: "Este homem foi apaixonado por você. Não é possível, depois de quarenta anos, alguém lembrar o nome de outrem, saber da sua vida, lembrar de detalhes e olhar daquela maneira para uma mulher que já se conheceu há tanto tempo e que já não é mais nenhuma uma jovem". Bem verdade que o comentário foi exagerado, mas ela percebeu que, na vida daquele homem, ela representou alguma coisa, um sentimento maior, uma admiração qualquer, mas, para ela, o melhor de tudo, foi o olhar que viu naqueles olhos claros emoldurados por um cabelo grisalho: Desejo, tesão, surpresa. Repetiu para si mesma.  Estou viva! Sou mulher! Sou bonita!  Dormiu bem naquela noite...




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sábado, 22 de maio de 2010

Vestidos de Crepom


Eram três. Estilos completamente diversos: Uma muito magra, cabelos bem lisos meio tímida e sonsa: outra morena, alta, corpo escultural; a terceira era do mesmo tamanho das outras duas, corpo bem feito, cabelos ondulados. Duas irmãs e uma tia, 20/21, 17/18 e 15 anos.
Lógico que a tia era a chefe do trio e, por ser a irmã da mãe das outras duas, aquela lhe confiava assuas duas filhas, que escondidas do pai, iam para as farras acobertadas pela genitora.
As festas aconteciam sempre sexta feira ou sábado à noite. Algumas vezes eram festas familiares nas casas dos amigos da tia, essas eram boas, mas, boas mesmo, eram as festas no SESC de Nazaré.
O SESC mantinha um salão para eventos num sexto ou sétimo andar de um prédio no centro do bairro de Nazaré, aliás, o prédio faz mesmo uma ilha, porque ele fica solto no meio de algumas encruzilhadas, talvez estrategicamente construído para não incomodar os vizinhos com as festas que eram programadas e já faziam parte do projeto desde a sua construção.
Bom, a preparação para a festa já começava na semana anterior, quando elas eram anunciadas, normalmente, tinha festa de quinze e quinze dias. A Tia, a que sabia de todos esses eventos dava um jeito de avisar às sobrinhas, ia à casa da irmã, deixava recado, etc. Etc. Etc. Isso sem que o pai delas percebesse.
A mãe dizia que elas iam dormir na casa da avó, iam passar o final de semana lá.  O pai concordava, sem qualquer prazer, mas afinal era na casa dos avós, portanto...
Bom, o fato é que a permissão estava dada e precisava-se de roupa decente para ir à festa. Havia de ser uma roupa nova, pois não havia outra maneira: como poderiam chegar a uma festa com roupas batidas, conhecidas pela maioria dos frequentadores. É porque antigamente os grupos que freqüentavam os lugares eram conhecidos uns dos outros, tinha até grupos rivais. As meninas que participavam de um grupo não podiam ter namorados de outro grupo, até porque, quando isto acontecia, era o maior quebra pau. Quebra pau mesmo, a briga era de mão, não tinha este negócio de tiro e nem de quebrar garrafa, a porra era mesmo na mão grande.
O fato é que a roupa tinha que ser arranjada.  A mais nova delas tinha muita roupa, fruto de ofertas de amigas da mãe, roupas semi novas que eram dadas, o que era ótimo, porque ela sempre estava bem vestida, o problema era as outras duas, mas nunca se deixou de ir a festa por isso.
Mas numa dessas festas a roupa das três foi feita mesmo. O milagre da multiplicação aconteceu para as três. É que apareceu uma moda de vestido de "crepom", um pano que parece impermeável e todo enrrugadinho.  A multiplicação explica-se: é que além da novidade do crepom, ele veio acompanhado de um detalhe, as listras.  Fez-se tecido de crepom de listras de todos os tamanhos e cores, desde a listra bem fininha, até listras bem grossas. Que fizeram as três festeiras: Compraram três tipos de listras: Uma bem grossa, em tons claros de verde, rosa, bege; a outra uma listra média, em tons mais fortes, azul escuro, branco e um tom de lilás, e a ultima umas listrinhas muito fininhas, de muitas cores, sendo que prevalecia o amarelo. O modelo? O da moda, um vestid o tipo camisa de homem, com bolsos na frente à altura dos seios, com laterais com um corte arredondado. Os camisões eram largos, e ficavam no joelho, a graça ficava quando se colocava o cinto largo, que não ficava na cintura e sim quase no quadril, e puxava-se o vestido para cima, fazendo com que ele parecesse uma saia e blusa. Quando se puxava o vestido para cima, ele vinha até o meio da coxa, uma mini saia ainda composta, o descomposto ficava por conta da abertura lateral, porque quando o vestido subia com o cinto, também a abertura subia, resultado: deixando aparecer, em alguns movimentos mais bruscos, a calcinha. O certo é que as três descobriram a pólvora durante algum tempo com esses vestidos. Tenho certeza que vocês já adivinharam por quê?
É isso mesmo. Hoje a festa era vestido de listras largas para a tia; media para a irmã mais velha, finas para a menor. Daqui a 15 dias, listra fina para a tia, listra grossa para a irmã mais velha, listra media para a menor. Quinze dias depois, listra media para a tia, listra grossa para a menor, listra fina para a mais velha.
A metamorfose não acabava aí: Os detalhes ainda faziam muitas trocas. Compraram cintos de cores diversas, as cores predominantes nos tecidos, e os cintos eram trocados de acordo com a troca das listras, mas não eram só os cintos, também havia os sapatos, e aí o bicho pegava, os pés tinham de ser ecléticos, variar dos 40-41 número dos pés da tia aos 36-37 o da sobrinha menor, a sobrinha mais velha calçava 38-39. Aí a porra pegava mesmo, porque a tia e a irmã ainda podiam trocar 39 para 40 ainda se arrumava com algodão no bico, caso fosse sapato, mas de 39 para 37, não dava jeito mesmo, embora isto não fosse um grande empecilho, pois mesmo com sapato saindo do pé e o bico cheio de gaze, pano algodão, a festa não deixava de ser curtida.  
Os vestidos também podiam ser usados soltos, sem o cinto, e o foram muitas vezes. As três foram em muitas e muitas festas sempre com a troca de vestidos, até o dia em que, uma virou "batista" e deixou de ir às festas; a outra foi embora para o Rio de Janeiro e a última, a menor delas, arrumou outras parceiras. No entanto, para esta, a troca de roupa não deixou de ser feita, a variedade tornou-se bem maior; é que ela encontrou uma colega que tinha, pense aí: Quatro irmãs mulheres! Com esta amizade a troca passou a ser uma constante, e tinha outros objetivos que não só as roupas! Agora se podia trocar de namorados, o que realmente aconteceu muitas vezes. Tempos bons aqueles!
Tudo isto só foi lembrado porque, numa mesa de restaurante em Portugal, em frente a uma travessa do melhor bacalhau a estilo lagareiro de Lisboa, ali na Mouraria, a menor das três, hoje já tão idosa quanto ás outras duas, viu um cidadão sentado usando uma camisa de crepom com listrinhas fininhas coloridas, que a fizeram voltar ao tempo da irresponsabilidade responsável, das trocas de vestidos, da espera ansiosa da hora do "baile" começar, embora, naquele momento, estava mesmo querendo saber há quanto tempo aquele cidadão tinha aquela camisa, porque há muito tempo, muito mesmo que não via  nada com tecido de crepom, além do mais, o estilo da camisa remontava um outro tempo. O colarinho era fino, as mangas curtas tinham uma dobra do próprio modelo, os bolsos pequeninos também tinham uma preguinh a no meio. A camisa devia ter pertencido ao pai daquele, pois ele, com certeza, não teria idade suficiente para usá-la no tempo em que o "crepom" estava no seu auge, no tempo em que a troca de roupas era mais de que uma simples forma de parecer estar de roupa nova, era sim, uma grande demonstração de solidariedade e união entre pessoas; uma tia e duas sobrinhas e entre amigas.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Um lindo homem! Meu tio.

Não tenho problemas em contar estórias, mas de vez em quando tenho dúvidas se devo ou não escrevê-las, é que na nossa vida é entremeada de tantas outras, que fica difícil falar de uma sem falar da das pessoas que conosco interagiram.
Mas vou arriscar e vou contar coisas e citar nome de pessoas, nomes reais, personagens de fatos reais.
É o caso do meu tio Celestino. O meu tio Celestino, talvez tenha sido o homem mais bonito que eu já conheci, isto é; até os meus dezesseis anos. Ele morou conosco por algum tempo, aliás, na minha casa, todo mundo chegou e morou, os meus pais permitiam, era até engraçado. Pobres, fudidos, mas sempre tínhamos gente em casa, seja morando por um tempo, seja adotado ou estando ali de passagem.
Tio Celestino passou algum tempo conosco quando morávamos  na Imperatriz, o outro irmão do meu pai, de nome Afonso, viveu conosco algum tempo, quando morávamos no Garcia, dele não me lembro direito porque era muito nova. Era mais baixo que os dois outros e era feio, para o meu padrão de beleza. Tinha uma porra de um paletó marrom que devia andar sozinho, pois era usado por meu tio para tudo, de casamento, a batizado e missa aos domingos, tudo enfim.
A minha casa do Garcia tinha uma parte térrea, onde ficavam os quartos, acho que eram dois, um corredor, uma sala, daquelas que a gente nunca entra para não sujar, e que todos chamam de sala de visitas. E olhe que era mesmo, só visitas tinham o direito de ali chegar, sentar, comer, sujar a toalha da mesa, sem que a minha mãe dissesse porra nenhuma. Eu e a minha irmã, nem pensar, eu,quando muito ia para debaixo da mesa porque minha mãe sempre fez com que eu passasse "óleo de peroba", aquele do frasquinho de vidro que, salvo engano, tem um índio no rótulo, nos móveis rebuscados de lá de casa com uma escova de dente, o óleo ficava escorrendo, e tudo brilhando muito, este sempre foi um dos meus trabalhos, do Garcia à Camaçari, limpando os móveis da minha mãe. Graças a Deus que quebraram todos nas constantes mudanças: acho que, se assim não fosse, até hoje estaria limpando-os, pois, certamente eles estariam comigo, todos sabem que gosto das velharias e então...
Pois, mas quero falar é do meu Tio Celestino, o caçula dos irmãos de meu pai, que veio para o Brasil, como os outros dois, meu pai e tio Afonso, para fugir da guerra. Vieram os dois primeiros trazidos por minha madrinha, a Tia Palmyra, uma espanhola espanhola das aldeias, daquelas que nunca saiam de casa para nada, imagine que até para o meu batizado ela mandou uma representante, resultado, fiquei com duas madrinhas, ela e a Tia Amália, não sei se foi isto uma sorte ou azar, mas, o fato é que ganhava presente das duas.
Tio Celestino era um homem que se poderia considerar alto, estatura boa para homem. Era espanhol e, como os seus patrícios, não tinha bunda, quero dizer, a bunda era batida, meio para dentro, mas isto em nada tirava o seu glamour.  Era largo nos ombros e tinha, o que eu mais admirava, olhos, cabelos e bigode da mesma cor, tudo com uma cor que variava do mel e chegava ao ruivo, era uma coisa mesmo maravilhosa.  O nariz era grego, aliás, tanto ele quanto o meu pai tinham perfis "gregos", perfeitos. Tinha sardas nos ombros, sardas que, ás vezes estavam, também, quase da cor dos olhos, cabelos e bigode.
O bigodinho era fininho, tinha um ator que também usava um desses, penso que o Clark Gable, aliás, era moda na época. Estava ele sempre bem vestido, mesmo quando trabalhava de caixeiro na padaria, ali na Baixa de Sapateiros, quando esta Baixa era mesmo chique, estava bem arrumado, mas havia uma roupa que, em particular, eu adorava vê-lo vestido: Era um terno branco de linho. Era perfeito, nunca esqueci. O corte da calça era qualquer coisa, lhe assentava na bunda como uma luva.  Las Pantalones eram folgadas, somente na parte traseira é que ficava assentada na bunda. Na frente tinha duas preguinhas laterais, que criavam um volume dos dois lados. Ele vestia este terno com uma camisa de listrinhas bem fininhas, já não recordo a cor delas, e colocava um cinto marrom claro, que mais chegava para o terra, que combinava com os sapatos. Se você olhasse rápido confundia tudo, cabelo, olhos, bigode, cinto e sapato, tudo de uma cor só. Os olhos brilhavam, ele sorria com os olhos, olhos que deixaram muita gente doida, tenho quase certeza disto, lá em casa, aos domingos tinha muita visita feminina, que por acaso não eram para mim, Odete e minhas tias maternas que o digam.  Tinha um riso! Ou melhor, um sorriso de lado, safado, descarado, que aprendi a gostar desde cedo e adorava ver em meus namorados aquele mesmo riso. Tive uns dois que sorriam igual. Só muito depois descobri o significado e o poder daquele riso sacana.
Cresci com esta imagem do meu tio, ele não se casou no Brasil, viveu aqui durante muito tempo. Fui interna e apesar de tê-lo visto algumas vezes depois do internato, perdemos o contato e soube que ele teria voltado para a Espanha. Ele foi o único deles, dos três irmãos que voltou. Meu pai e Tio Afonso aqui faleceram na Bahia, ambos com a mesma doença e ambos na nossa casa, quando morávamos no Engenho Velho da Federação.
O tempo passou, eu me casei, descasei, formei em Direito, fiz concurso para Juiz e fui aprovada e, quando a fartura deixou, fui para a Espanha, não só queria conhecer a terra dos meus avós paternos, pois, parte da minha origem, como também rever o meu tio Celestino, vê-lo, saber dele, como ele estava, afinal ele era o mais novo, certamente estaria melhor que os dois outros que se foram.
Viajamos eu e o meu companheiro para Europa e, de Lisboa, pegamos um vôo para o Porto; de lá pegamos um taxi que nos deixou em Vigo, já na Galícia.  A família do meu pai era de uma aldeia chamada Tourón: Um caminho no caminho de Ponte Caldelas,  Pegamos um outro taxi, este já dirigido por um galego, e dissemos para onde queríamos ir. O motorista, um jovem e bonito espanhol que já tinha, também, morado no Brasil, perguntou-me quem íamos procurar ali. Disse-lhe o nome do meu Tio Celestino. O homem olhou-me pelo retrovisor e perguntou-me há quanto tempo eu não o via; respondi-lhe há muito tempo, mas que ele tinha voltado para a Espanha e agora eu vinha vê-lo, bem como conhecer o restante da minha família. O homem começou a fal ar de uma pessoa que ele conhecia com este nome, que tal qual ele, também era taxista. Contou-me que este senhor veio do Brasil e casou-se com uma rapariga que era sua sobrinha, mas que tinha falecido há mais ou menos uns 3 a 4 anos.
Gelei! Mas disse ao homem que não era possível, primeiro porque não tinha notícia de que meu tio fosse taxista, segundo, se fosse o meu tio, alguém teria avisado aos irmãos dele no Brasil, o que não tinha acontecido, portanto... Segui no firme propósito de ver o meu tio, mas confesso que já começava balançar com a historia do motorista do táxi, que realmente conhecia bem a região e a minha família, pois me falou que o Celestino que ele conhecia tinha uma irmã, a única que estava viva, de nome Josefa, que era casado com uma moça de nome Maria Elisa, por acaso também o nome da minha irmã mais velha e da minha avó paterna, e muitas outras coisas até o momento em que parou na porta da casa dos meus avós e, naquele momento, infelizmente, tive a certeza de que ele realmente estava falando do meu tio Celestino, que, depois soube, também falecera com a mesma doença dos irmãos.
Fiquei desanimada com a viagem, mas mesmo naquele momento, não pude deixar de lembrar do homem que conheci, lindo e elegante, e ficar com uma pontinha de inveja da minha prima que com ele casou e que, graças a Deus, eu não conheci.
Que Deus os guarde em paz   

quarta-feira, 19 de maio de 2010

SOFISMAR


Quisera eu ser um sofista. Será que esta palavra existe mesmo? Quem sofisma é um sofista ou sofismador?
Pois é, de acordo com os dicionários não filosóficos, porque estes têm um conceito muito mais atrativo para sofista; sofismar é enganar por meio de sofisma: Ficamos na mesma, pois continuamos a sofismar sem saber mesmo o que é.
No momento estou tentando sofismar, vocês perceberão isto até o final do texto. Estou dizendo que estou tentando porque para ser sofista você precisa ser muito bom; conhecedor de mil coisas e ser muito, mas muito, inteligente, com uma capacidade argumentativa das melhores, ou daquelas que um ser normal não pode alcançar. Daí já se vê que eu só posso tentar ser sofista, pois, não sou detentora de nenhuma destas capacidades inerentes ao sofista.
Quando você inventa uma mentira e quer que ela se torne uma realidade crível para outrem, você tem de ser um bom sofista, sim, porque esta capacidade de enganar muitos, só é peculiar ao sofista, mas preste bem atenção: já disse que não é qualquer um que tem esta capacidade, porque além das qualidades que já falei acima, um sofista tem que ter uma memória gigante. Lá vou eu, de novo, ladeira abaixo com esta idéia de ser um sofista. A minha memória é mínima, muito curta, pequenina, talvez porque não sofisme e, portanto, não tenho que estar sempre pensando no que falar para não contrariar o que já disse antes.
 É preciso não confundir mentiroso com sofista, este último pode ser comparado a um grande filósofo, um mentiroso nunca; talvez um mentiroso chegue próximo a um cafajeste, um sofista nunca será assim qualificado, pois ele é um sábio.
Até pela etimologia da palavra os adjetivos não podem se confundir.  O sofisma vem do grego sóphisma;  Veja bem a diferença, mentira vem do latim mentiri, esta coisa latina dos latinos, que italianizam tudo na origem, como se o latim só tivessem gerado o próprio italiano. Viu, parece que acabei de sofismar sem querer mesmo, pois quero que latinos signifique latim, o que não é real, mas o que quero dizer, e tenho certeza que vocês sabem, é que as línguas latinas derivam do latim, não estou a me referir aos que, para os americanos, nascem na América Latina, inclusive no Brasil, pode ter certeza que, depois da Califórnia, que tem latino para cacete, todo mundo é latino, não interessa de onde veio: Se hablas español, ou o nosso querido e unitário português de americano do sul, é latino e ponto final, Olhe aí! Os americanos do norte sofismaram e impregnaram o mundo de latinos, pobres coitados subdesenvolvidos que não tem pátria, são apenas, latinos. O pior é que esses próprios que são chamados de latinos acreditam que o são, da maneira que os donos do mundo etnizaram-nos.
Pois sim: já se sabe que sofismar não é para qualquer cafajeste mentiroso. Sofismar é de uma dignidade tremenda, pois a partir de um pensamento que se sabe errado, argumenta-se tanto, até com argumentos completamente verdadeiros, que este pensamento errado passa a ser uma realidade verdadeira. Gostou? Viu que não é para qualquer um? Você tem ser culto, um grande e bom argumentador, para convencer todos, ou melhor, uma grande maioria, daquilo que é certo, o correto, mesmo tendo a certeza de que tudo começou errado.
Acho que em política temos muitos sofistas, embora muitos não possam assim ser qualificados, são apenas cafajestes, mentirosos e aproveitadores, nunca chegarão a sofistas, não tem capacidade de enganar tantos, deixam transparecer o que são e, por isso mesmo, mostram que não tem qualquer aptidão para sofismar, têm para mentir em determinados momentos para proveito próprio, mas não tem a grandeza do sofista que a partir de um pensamento errôneo, modifica a realidade de muitos, que passam a acreditar nele como o gênio, o salvador, o correto.
O sofista sabe usar os signos, tem uma grande intimidade com a semiótica; sabe usar o significante e o significado, também é um hermeneuta, sabe interpretar, sabe dizer, tem um discurso, pois este é o que lhe traz a alguma coisa que o sofista quer introduzir na sua verdade. O sofista usa a palavra como ninguém, ele precisa mais dela de qualquer outro pensador, porque ele quer que seu pensamento, traduzido em palavras, entre no intelecto do outro e passe a ser, também, a sua própria palavra, torne-se, pois, uma verdade.
Antigamente, e coloque aí antigamente mesmo, cerca de 450 a.C, os sofistas eram professores, mestres na arte do bem falar; eram, na realidade, educadores profissionais e não pensadores, e contribuíam para o pensar livremente, para a capacidade de argumentação, fazendo críticas ao que existia e propondo alternativas,[1] mas já não se faz sofista como antigamente; mas reparem bem, eram eles educadores profissionais, portanto, pagos.
Como eram pagos, deduz-se, que recebiam pagamento da classe dirigente da cidade por onde distribuíam o saber, o que significa que a argumentação deveria ser influenciada pelas "verdades" dos pagantes. O ensino dos sofistas concentrava-se na "arte de persuadir, independentemente da validade das razões adotadas."[2] Esta arte era denominada retórica.
De acordo com Maria Amelia (2010), "os sofistas revelaram que quem domina a palavra é poderoso" [3] Não tenham dúvidas disto, lembrem-se da campanha de Obama e também do mot: "We can": Yes! We can.  We can em nome de uma verdade que se estabeleceu para os americanos, acabar com todos os outros seres humanos, sem dó nem piedade, se, de acordo com os seus princípios, a paz estiver ameaçada. Em razão de um sofisma, podemos jogar uma bomba nuclear e acabar com toda uma população, e hoje, impedir que outrem desenvolva os seus sistemas de defesa, para que possa impedir que o seu sistema invada o meu e acabe com ele. É sofisma ou não o "We can"?
Este é um grande sofisma de um grande sofista, realmente um brilhante argumentador, um comunicador de primeira linha, embora com receptores pré-dispostos a aceitarem as suas argumentações. Apesar de grande argumentador ele foi mesmo ajudado por um contexto em que as pessoas queriam acreditar que eles realmente podiam: e aí está. We can! E o que será que vai mais acontecer em torno deste we can?
Pois é, temos sofistas grandes. O mundo teve vários deles, seja para o bem, seja para o mal. As verdades deles se tornaram de muitos, exatamente pela capacidade de argumentação que eles tinham e têm. A palavra na boca do sofista é uma arma mais poderosa de que uma arma nuclear, de que o medo dela, porque através da palavra o sofista pode lhe convencer de que "matar em nome da humanidade" é um ato de grande solidariedade.
Um sofista consegue, e olhe que é difícil, convencer outros sofistas. Ainda podemos continuar falando do criador do "We can". Pois não é que o homem recebeu o Nobel da Paz. Vá à porra! O que fez o afro descendente em favor da paz no curto interregno entre ser eleito presidente do EEUU e receber tal prêmio? Terá sido por ter se tornado o primeiro afro descendente a ser presidente dos Estados Unidos? Isto contribuiu para a paz mundial em que? Quantos deixaram de morrer com isto? Quantos deixaram de passar fome por causa disto? Quantos soldados americanos deixaram de morrer no Iraque, no Afeganistão, etc., etc.? Aliás, quantas famílias americanas deixaram de chorar os seus jovens filhos mortos? Não se tem respostas, e olhe que nada desta perguntas são produtos de sofismas. São fatos e não pensamentos, portanto, não podem ser sofismas.
Bem, vou parar por aqui, falar de sofistas é ruim porque nos leva a indignação, e corre-se o risco de falar de muita gente e, também de esquecer muitos, o que seria uma grande injustiça com aquele que se especializou em argumentar o erro, em transformar grandes enganos em verdades incontestáveis, que levam milhões a, reafirmando o erro, protagonizarem fatos que deprimem, arrasam, e que desumanizam o "ser humano".
Ainda assim, queria ser uma sofista, queria ter a capacidade argumentativa de convencer pela palavra, de saber utilizá-la para o bem, de fazer com que as pessoas ficassem melhores e olhassem mais umas para as outras e deixassem de acreditar naquelas que podem fabricar o "não ser", mesmo que tivesse de começar a argumentação por força de uma idéia errônea, de uma falsidade, de um "sofisma".  
E você, quer ser um sofista? Comece por raciocinar logicamente para poder reconhecer quando um deles está a sofismar.     




[1] Maria Amélia Carreira das Neves. "Retórica". Semiótica Lingüística e Hermenêutica do Texto Jurídico, Lisboa,Instituto Piaget, 2010, p. 231,
[2] Nicola Abbagnano. História da Filosofi, Vol I.Lisboa, Editorial Presença,1976 p.99-100
[3] Ob cit. p 231

terça-feira, 18 de maio de 2010

CATALOGADORA DE VIDAS



É, é isso mesmo: queria ser uma catalogadora de vidas. Repare bem! Não é somente saber fazer uma lista biografada de pessoas importantes, dizer somente dos feitos das pessoas que se destacaram, seja por motivos importantíssimos ou não. Não é falar de prêmios nobel, tampouco de pessoas não tão nobres, mas é falar de gente, de gente importante para nós mesmos, aquelas que passaram pela nossa vida, e até daquelas, que se não passaram pela nossa, passaram pela dos amigos e tornaram-se, para você, importantes também.
Ah! Teria eu tantas pessoas para catalogar e tantas coisas a dizer, mas como não poderia deixar de falar de atos e fatos da vida delas, fico a pensar se seria bom ser catalogadora
Não que eu vá fazer julgamentos, aliás, o que não seria a coisa mais errada, porque esta estória de para você ser o bom, o maravilhoso, o que esta acima do bem e do mal, para mim, passa exatamente por um julgamento.
Digo-lhes por que acho isto. Se você não faz um juízo de valor, não interessa que dentro dos seus próprios padrões, você não vai poder classificar os atos das pessoas, não vai saber distinguir o certo do errado. Não interessa que este certo ou errado seja exatamente da sua própria óptica. O que seria dos grandes filósofos se não pensassem diferente, o que seria da dialética se não se pudesse dizer do certo e errado. Uma monotonia só.
Todavia, as pessoas não gostam que ninguém as julgue, como se elas não se julgassem e julgassem as outras a todo o momento. Observe bem, você não precisa divulgar os seus julgamentos, aliás, sapientemente, isto e o melhor que você faz, tanto por si, como pelo próximo, porque o próximo também tem valores e está te julgando também. No momento em que você divulga o seu julgamento você se expõe a tudo, ao ódio, ao amor, a inveja, ao ciúme, todo o tipo de restrição. Se você não tem pique par segurar a onda não se arrisque, mas não seja falso, como muitos, que dizem, até publicamente, que não julgam ninguém. 
O fato é que eu queria ser catalogadora de vidas. Por exemplo, queria poder falar, sem quaisquer restrições, de algumas pessoas que passaram pela minha vida, desde aquelas que tentaram e tentam não me magoar, quanto daquelas que me magoaram muito, porque dentro da mágoa que elas trouxeram, se mostraram mesmo como pessoas, como elas realmente eram e são, e quando isto acontece, pode-se tirar muito proveito dessa relação, isto em termos do nosso próprio crescimento.
Catalogaria eu, evidentemente até por lógica, a vida de quem foi muito íntimo. A vida dos amores, sim, porque por pior que eles tenham sido, em muitos momentos nos proporcionam tanta felicidade que temos a sensação que aquilo não é real. Neste momento poder-se-ia  falar de uma única pessoa, catalogar esta vida, como se fosse necessário extrapolar o nosso íntimo para que esta vida estivesse num memorial para ser sempre recordada. Sem dúvida alguma uma vida que se entrelaça na nossa e que nos dá muitos motivos para sentimentos contraditórios, mas uma catalogadora deveria falar do que essa pessoa deixou transparecer da sua própria vida e que refletiu na dela. Bem verdade que poderíamos falar de uma vida um pouco fútil, isto nos nossos próprios padrões, mas nunca poderia deixar de reconhecer que a vida fútil em termos materiais e estéticos, não apagou o esforço que se fez para se conseguir esta futilidade, porque ela é fruto de uma existência esforçada, trabalhada, construída.
O desvalor da conduta em relação ao próximo não pode apagar a trajetória vitoriosa da pessoa que esta a ser  catalogada.
Filho de uma família numerosa, sem grandes recursos. Criado por uma avó, que segundo ele próprio, lhe deu tudo, acha-se que não aprendeu as lições corretamente, muito particularmente as que se relacionavam com o respeito pelas pessoas, mas, com certeza, ela deve lhe ter repassado estes valores que, foram ultrapassados em nome do material e do egoísmo. É necessário que se diga que este egoísmo é muito peculiar, porque é até mesmo um egoísmo de amor, e qual não seria não é? Somos egoístas porque nos amamos tanto que nos esquecemos dos outros. O egoísmo peculiar do catalogado se mostra intensamente, quando esta pessoa que impressionar alguém, ou alguma parceira, parece que o egoísmo acaba, mas não é bem assim. É que, para que a pessoa tenha um julgamento favorável, então há um desdobramento do egoísmo, que agora passa a ser partilhado com outrem. Aquele que recebe o egoísmo pensa que esta sendo importante, amado, mas não se engane! Você só está refletindo o egoísmo do outro, mas nada.
Todavia, mesmo com este egoísmo partilhado, há que se ter em conta que essa pessoa venceu. Se queria um dia fazer medicina, hoje deve dar graças a Deus por não tê-lo feito, porque como advogado que é, embora tenha recebido ajuda substancial para sê-lo desde o tempo da faculdade, conseguiu viver, sobreviver, criar filhos, ter amigos, ter muitos bens materiais.
A capacidade de enganar foi crescendo de acordo com o crescimento em termos materiais, mas o catalogado conseguiu fazer, e continua conseguindo, tudo o que quis, talvez ainda venha a comprar uma "off shore", Volvo penta 260 de 37pés; espera-se que não escolha  uma "SMERALDO",  sem dúvida alguma para mostrar o seu "poder" e, à sua maneira, demonstrar que não necessita de ninguém, e sem dúvida alguma, não necessita, pois que, se no seu íntimo realmente precisa, isto é verdadeiramente, as pessoas não vão saber o momento, porque, no dia-a-dia,  ele se mostra de uma maneira convincente para determinadas pessoas, que estas pensam até, que são imprescindíveis para ele: o que não é uma verdade, é apenas a estratégia de um bom jogador, que aprendeu a ganhar e a perder na vida, muitas vezes calado, aumentando o colesterol, o triglicérides e tantas outras taxas, que recebem tratamento particular de um cardioparticular, que recomenda exercícios físicos, que são feitos com um personal na melhor academia da sua terra, que, por acaso, fica hoje no mesmo local onde mora, como merece e se recomenda a quem pareça com o catalogado de hoje.
Boa sorte catalogado, continue realizando os seus sonhos, mas tenha cuidado!    Alguém pode não descobrir qualquer virtude em você, e vai te tratar, exatamente, como você trata os demais... 
Cuidado! A catalogadora vai atacar outra vez!

sábado, 8 de maio de 2010

Confissão


Todas as semanas no internato uma obrigação a ser cumprida: Confessar-se. O dia, acredito, era a quinta feira pela tarde. Os padres variavam de acordo com o colégio em que estivesse interna, a lengalenga era a mesma: fila em frente ao confessionário, um cubículo feito de madeira com duas laterais com umas gradezinhas trançadas da própria madeira. Nas laterais, uma tábua para o penitente pecador se ajoelhar e falar dos seus pecados.
Todos os confessionários eram iguais, a mesma estrutura, alguns só tinham um lado para ajoelhar, mas a gradinha era igual. Pela parte de dentro, onde o padre ficava, havia uma cortininha fina nessa grade, uma espécie de tela mais ou menos fina, que, acho, era para que o padre não visse a sua cara, e nem você a dele, também para diminuir a transmissão de vírus, ou ainda, quem sabe, esconder ou dificultar a visão de quem estava do lado de fora, para não se saber o que se estava a fazer ali dentro.
Quando estudei no São Raimundo o padre Capelão e responsável pelas almas do internato, acho que não só pelas almas, era o Padre José de tal, um belo espécime masculino, alto, bonito, com lábios carnudos, uma tentação para alma e corpo daquelas pobres coitadas que não precisavam de um representante de Cristo tão bonito assim. Fiz a minha primeira confissão com ele, porque tinha de fazer a primeira comunhão e a minha alma precisava estar purificada, livre de todos os pecados para receber Deus. Agora pense! Uma criança de oito ou nove anos precisar purificar a alma para receber Deus. O que passaria pela mente do sacana que estabeleceu uma condição desta para que uma criança recebesse Deus?
Admito até a necessidade de um confessor, não aquele do São Raimundo, pois aquilo não era propriamente uma pessoa indicada para perdoar os pecados, ele era uma causa para eles. Não acredito que as internas mais velhas e as próprias freiras não tivessem vontade de ter uma intimidade maior com aquele representante de Deus. Eu, que só tinha oito ou nove anos, achava-o lindo, aliás, ele continuou sendo, pois ainda o vi muitas vezes: Ele ficou famoso, chegou mesmo a ser Professor de Universitário, Reitor de uma Universidade na Bahia; pense as outras com idade suficiente para separar o joio do trigo e escolher bem as espigas.
Enfim, no dia da confissão uma fila enorme se formava nas laterais do confessionário. O padre atendia tanto de um lado quanto de outro, certamente para descansar os ouvidos, não cansar demais um deles.
Quando chegava a sua vez, detalhe: você tinha de estar de véu, não sei por que esta exigência, mas assim era: você se ajoelhava e começava a contar os seus “pecados”. O padre silencioso ficava aguardando você falar, e se você demorava, naturalmente com o pudor de contar seus segredos, ele com aquela voz horrível de padre, aquele “sussurro”, que odeio, aliás, na Bahia tem um político que deve ter sido, ao menos, seminarista, porque ele tem voz de padre, acho que por isso não voto nele, a voz me soa falsa, perguntava o que você tinha feito de errado. Ajoelhada, contrita, tinha que me lembrar o que tinha feito durante a semana que pudesse ser considerado pecado e que merecesse o perdão de Deus, que era comprado com a penitência ordenada pelo confessor.
Ah meu Deus! Eu que não tinha pecados à época rezei tantas Ave-Marias que não posso ouvir mais esta oração, Pai Nosso então! Cruz credo!!!! Fico imaginando quem pecava mesmo o que deveria fazer para se penitenciar. Os meus pecados, aquilo que eu considerava como tal, isto porque as freiras é que diziam que estava errado, eram: porrada nas colegas; xingamentos; esconder coisas; não cumprir as tarefas, pintanças que eram normais a todas as crianças naquela idade, mas que viravam pecado na hora da confissão e da penitência. Hoje acho que aquilo era uma maneira de fazer uma lavagem cerebral nas crianças para que elas tivessem comportamentos adequados e não dessem o mínimo trabalho as freiras.
No dia em que peguei a Rita pelos cabelos e bati a cabeça dela diversas vezes na parede, acho que se alguém não chegasse a tempo eu ia matá-la mesmo, passei a tarde toda na Igreja rezando não sei quantos terços, sem comer, sem beber água, sem fazer xixi, nada. O pecado tinha sido violento, pior seria se soubessem a causa: Bati na sacana porque ela me disse que a irmã Eutália, uma freirinha nova e bonitinha, de quem eu gostava muito até, era mais bonita que o Padre José: Me retei mesmo! Que ousadia daquela filha da puta dizer tamanha barbaridade. Acho que a minha preferência sexual se estabeleceu naquele dia. Se eu tivesse contando a causa, qual você acha que seria a penitência? E o pecado, qual seria: o de ter dado a porrada na colega ou o de “cobiçar o homem alheio”? Sim porque acho que se o mandamento é “Não cobiçar a mulher do próximo” é evidente que “cobiçar o homem da próxima”, lembre-se que as freiras eram esposas de Cristo e que o padre era o representante dele, deriva do mesmo dogma e, portanto, quem assim age peca, peca tanto que merece uma penitência a pão e água durante meses. Hoje, se ainda fosse assim, imagino quanto gente já estaria em reta final, definhando, esperando a morte chegar.
No Salette, o confessor era o capelão. Era um Cônego, não sei bem o que isto significa na hierarquia da Igreja, mas era assim que o chamavam, o Cônego fulano de tal, não lhe recordo o nome, acho que é porque não gostava mesmo dele. Usava uns óculos tão feio que eu achava que ele era um monstro, não sei por que fazia esta associação.
O confessionário ficava no fundo da Igreja e as internas faziam fila na lateral da igreja. A briga era para chegar a primeiro lugar, mesmo havendo aquelas divisões ridículas: primeiro as mais velhas, depois as que estavam em nível escolar mais avançado, depois o ginásio, e, no final a pirralhada, onde eu estava incluída. Só me safei quando comecei a trabalhar na portaria da escola, aí eu tinha alguns privilégios: tomar banho ao meio dia antes de todas; almoçar a comida das freiras, antes de todo mundo, o meu prato saia diretamente da cozinha, e, melhor que tudo, era passar na frente de todos no dia da confissão.
Os pecados continuaram os mesmos, mas ali eu já poderia contar coisas outras, estava mais velha e já tinha, literalmente, despertado para o sexo, o que era um pecado dos diabos, pense uma simples masturbação flagrada pelas freiras, uma merda total, caso até de expulsão. O que elas não sabiam, ou fingiam não saber, era a quantidade de casais que existiam dentro da escola entre as internas. Se contasse ao padre o que fazia abrigada pelas cobertas e pela escuridão do dormitório, certamente a penitência ia durar até hoje, e eu seria uma mulher frustrada, proibida de sentir prazer, como acho que deve ter acontecido a muitas das minhas colegas de internato.
Acreditem, paguei tantos pecados não pecados, que, se hoje peco, estou devidamente perdoada, e ainda tenho muito que pecar, porque a minha conta corrente com Deus, no que tange a penitência, está em crédito.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A Rua da Imperatriz e os cabelos da menina


Era linda, uma menina de chamar atenção. Os cabelos longos cor de mel. Começavam castanhos claros para acabarem dourados nas pontas. Sua mãe enrrolava- os em cachos, que caiam dourados até o meio das costas. De vez em quando fazia um cacho maior reunindo todo o cabelo do lado direito e colocava um laço. O laço era enorme e, como de costume, combinava com a roupa que estava vestida. Quando ia para a escola com este penteado, o laço era sempre azul marinho.
Sempre teve cabelo muito cheio, o que era um grande problema, pois pelo fio ser muito fino quando não estava preso, ou com os cachos feitos, virava uma juba.
Desembaraçar esse cabelo era problema para um ano e mais seis meses. Todos os dias pela manhã a mesma novela.
A novela tinha muitos personagens, não sé ela e a sua mãe. Primeiro eram os personagens da própria família que se fartavam todos os dias de ouvirem os gritos da mãe com raiva, e os gritos da filha com dor, porque como ela berrava para não pentear os cabelos a mãe lhe batia com o pente de osso que usava para desembaraçá-los.
Era flocklore na Rua onde morava, Rua da Imperatriz, uma rua que fica na cidade baixa, em Salvador, e que liga a Baixa do Bonfim à Boa Viagem.
Tinha uma vizinha que lhe chamava despertador, dizia ela que só acordava quando a menina passava gritando, pois muitas vezes era levada para a escola ainda a pentear os cabelos, sua mãe não tinha qualquer escrúpulo nesse sentido. A porrada comia solta, seja em casa, seja no caminho. Elas seguiam, as duas, uma na frente, claro que ela, e a outra atrás terminando de fazer ou os cachos, ou as tranças. Todo dia a mesma rotina; não se cansavam, ela de apanhar e a sua mãe de bater, os da rua, de ver a cena e, muitas vezes, quando a coisa tava muito grossa, oferecerem-se para acabar o serviço e levá-la à escola, o que era um grande alivio: pior para a senhora que só acordava quando ela passava gritando, nesses dias, com certeza, chegava atrasada ao trabalho.
O pior de tudo é que sua mãe não lhe queria cortar os cabelos, no que tinha muita razão: quando comportados, isto é; penteados, os cabelos eram lindos mesmo. Com eles e com o seu belo rosto, conseguiu sempre ser a rainha da primavera, rainha do milho, anjo nas procissões, baliza nas paradas em que a escola participava, enfim, tudo o que a beleza pode proporcionar naquela idade, e olhe que ela nem precisava vender os votos, alguém o fazia por ela.
Quando esteve interna o cabelo continuou a lhe dar problemas; primeiro pegou piolho, pense aí, um cabelo quase mel, da cor da lêndea, cheio delas e dos seus filhos, uma droga, as freiras endoidaram, mas não lhe cortaram o cabelo. Depois era o próprio cuidado com o cabelo, ela não tinha nenhum, não conseguia sequer penteá-los até o fim, não tinha força e o seu braço não alcançava, resultado estava sempre incomodando alguém para lhe tratar o cabelo. Lavá-los era outra novela, não conseguia tirar todo o sabão, que era de coco, naquele tempo não havia o luxo do shampoo, esfregava-se a barra do sabão nos cabelos, e depois enxágüe: Desembaraçante: que palavra era esta? O negócio era no braço mesmo, tinha de ser desembaraçado era no pente, na tora, o que lhe trazia mais e mais problemas, porque era dolorido o processo.
Continuou com o seu cabelo, e quanto mais ia crescendo também ele ia enchendo mais e mais, cada vez ficando mais seco e, consequentemente, volumoso; não havia maneira de amansar o bicho, ou tava preso de rabo de cavalo, ou tava solto e a juba era mesmo imensa; por causa dela teve a sua transferência da escola entregue a sua mãe, pois, um dia quando estava limpando o jardim da infância, um trabalhinho destes que só a ela era dado, porque ela ali perdia horas a fio limpando os brinquedos, as canecas, os pratos, enfim, tudo o que estava dentro das salas onde funcionava o jardim, a irmã responsável pela área, uma velha gorda e feia, lhe disse que ela estava parecendo uma leoa, e ela, prontamente: e a senhora UMA VACA! E a vaca agiu como tal: fez queixa a superiora da escola, que como rocha que era e já cheia de ouvir muitas e muitas queixas contra a garota, aguardou o final do ano e, quando a sua mãe lhe veio buscar para o natal, já encontrou a sua transferência pronta, sem qualquer direito à argumentação.
Não pensem vocês que a história do cabelo acabou: ele ainda continua cheio, perdendo a sua cor de mel, que agora já anda falsificada pelas tintas naturais não naturais, e ainda dando muito que falar a quem não tem, mas é uma marca registrada da sua portadora, que, mesmo de longe, é reconhecida por ele, que também já lhe valeu alcunhas várias, de hippie à louca.
Ela continua com os seus cabelos, muitas vezes, revoltadíssimos, mas que não lha impediram de viver e conseguir todas as suas vitórias. Cabelo que ajudou a lhe fazer uma mulher atraente e que, exatamente por tê-los, saber-se “diferente”.

terça-feira, 4 de maio de 2010

És, por acaso, mulher?

És, por acaso, mulher?

Pensava que, aos cinquenta e poucos anos, já tinha passado de tudo na vida, mas naquele dia passou a ter a certeza que não.
Um som de chegada de mensagem no seu celular lhe tiraria do sério durante todo o dia e mais alguns: O número era desconhecido, clicou no ler a mensagem e vejam só: “Eu nunca vou te abandonar em nenhum sentido, eu te amo e quero ficar com você, você não sabe a falta que me faz, me perdoe, não erro mais”. Adiante desta mensagem, fora do corpo dela, a complementação: “Esta mensagem me foi enviada por fulano de tal, já que vocês estão juntos, diga a ele para me deixar em paz”. Logo em seguida a certificação, o número que enviara a mensagem a quem agora lhe enviava,era um número para lá de conhecido, afinal passara muitos anos a ligar para este.
Num gesto quase que automático reencaminha a mensagem a quem teria enviado à enviante, com o pedido de respeito pela sua pessoa.
Uma raiva intensa cresceu no seu peito, não só pelo só fato da situação, já em si ridícula, mas pelo simples fato de ser mulher. Sim, porque naquele momento teve que concordar com o personagem de Soren Kierkegaard no Banquete (1845)[1], quando Constantino, no momento da sua fala sobre o amor e a mulher diz:”Ninguém chegará a compreender a mulher se não a julgar na categoria da facécia”[2]. Aliás, a palavra facécia não deve ser conhecida de muita gente, e, até mesmo quem um dia possa ler, apenas para saber que Kierkgaard existe, ainda que só depois de ler este texto, desconhecerá o termo, nem o autor nem a palavra é conhecida por todos os mortais, só muitos poucos têm este privilégio, que não seria divido com uma mensagista massagista. Certamente a pessoa que lhe enviou a mensagem não deve saber o que isto significa, e não há que se admirar por isto, afinal, também para um outro personagem da obra, a mulher está na ordem da estética, e não na ordem da moral. Se a ordem é da estética, o que importa é o belo, o aparente, o que se vê, o presente, nada além disto. A ordem da estética máscara o ser, porque ele não se apresenta com o seu original, que está mascarado, exatamente, pela ordem do aparente, do “estar”.
Atualmente, a ordem da estética é o comando, e todos esquecem da ordem da moral, daquela que nos faz o que realmente somos. O ser desprovido da ordem moral afasta-se de todos os princípios, porque não saber distinguir o certo do errado. Se não se distingue o certo do errado, qualquer coisa é válida, não há que se ter qualquer parâmetro, seja para agredir, seja para fazer bem, seja para qualquer coisa, os gestos se repetem e se reproduzem apenas porque são necessários a vida, ao quotidiano. Não se pensa em resultados ou consequências, a satisfação do momento é o que vale; O outro não existe, portanto, não há que se importar com ele. A ordem é de se desfazer, exatamente, deste outro, que no momento incomoda.
Sim, mas isto não afasta o que se estar a falar, o de ser mulher e de ter vergonha desta condição, isto nos termos em que postos pelos menos por três dos personagens do “Banquete” que embora tenha personagens que fazem apologia da mulher, no final também estão a desfazer dela, porque apenas lhe faz um objeto do prazer masculino, e por isso mesmo, há que ser bem tratada pelo que proporciona ao sexo forte.
Pois o certo é que aquela mensageira, mensagista, massagista, sabe-se lá o que, deve ser mesmo uma mulher nos termos em que postos pelos personagens do Banquete, o ser insensato, não capaz de pensar, ridículo como ridículo foi quem lhe mandou a mensagem, exatamente, porque, também segundo os personagens de Kierkgaard, os homens se tornam ridículos quando se apaixonam, principalmente quando se apaixonam por pessoas que não tem discernimento como o caso da “mulher” de quem se está a falar.
Se tornam eles ridículos porque se igualam as mulheres no que respeita a paixão. Esquecem-se de que o que é de dois, não necessariamente, se deve compartilhar com outros. O amor deve ser silencioso, viver de gestos entre os parceiros, crescer com eles. Para que a divulgação deste amor? Será que esta divulgação não seria uma forma de não amar? Será que é preciso que outrem saiba da sua intimidade com o ser amado? Será que fazer com que outrem pareça ridículo diante do outrem é amar? Não se acredita.
Por isso mesmo, aquela que recebeu a mensagem da massagista, mensagista, mensageira, se sentiu tão infame de ser uma mulher, porque quem lhe enviou a mensagem era, também, uma mulher.
Teve de concordar que “A condição de mulher é muito singular. É um ser feito de elementos tão complexos, que um só predicado não o pode exprimir; e quando os predicados se acumulam, vemos que ele se contradizem de tal forma que com tal contradição só a mulher se pode harmonizar e, o que mais é, se pode sentir feliz. [...] Com efeito, para os românticos, num instante a mulher é tudo, e no instante seguinte a mulher é nada; assim, nunca se sabe ao certo qual a verdadeira significação da mulher na vida humana. A infelicidade da mulher está em não poder conhecer a sua situação e o seu valor, exactamente porque é mulher”.[3]
Pronto aí está. A mensagista massagista não sabe o valor mesmo que tem como mulher, se bem soubesse jamais se colocaria na situação em que se pôs, não colocaria o seu amor no ridículo de se pensar apaixonado por um ser que não pensa, um ser que é incapaz de avaliar que um gesto pode por fim a um tudo que nunca existiu, a não ser na mente frívola de uma massagista, que idealiza uma vida com quem não lha pode dar. Enquanto ridículo, ou melhor, ridicularizado pela cegueira da paixão estética, continuará consigo, sabendo, inclusive, nos poucos momentos de lucidez, o mal que isto lhe estar a fazer. As queixas, embora também ridículas, demonstram o quão se é ridículo mesmo, porque não há como se esconder que uma mensageira massagista pode lhe causar vexames em determinados lugares. Pior é quando se tem minimamente consciência disto e, ridiculamente, não se sabe com que intenção, isto é verbalizado exatamente para quem não o deveria, a pessoa que recebeu a mensagem.
Seria muito bom que a mensagista massagista pudesse ler isto. Talvez não entendesse, talvez até pensasse que isto seria uma apologia a si, talvez tentasse enviar uma outra mensagem, certamente nos termos em que mandou a primeira, acha-se difícil, mas não impossível, para quem não pensa, para quem, nos termos dos personagens do Banquete, é uma mulher.
Quem recebeu a mensagem tem vergonha de sê-lo,nos termos aqui postos. E ainda que assim não fosse, ainda que tudo fosse favorável a “mulher”, não estaria nunca satisfeita de estar nesta condição, pois, nunca gostaria de ser identificada com a mesma palavra atribuída à mensageira massagista, e teria de concordar, indiscutivelmente com Vitor: Ser mulher é já uma infelicidade; mas infelicidade maior é não ver essa infelicidade”[...] Que Platão agradeça aos deuses por ter sido contemporâneo de Sócrates, invejo-o; que o faça por ter nascido grego, invejo-o também; mas quando dá graças a Deus de ter nascido homem e não mulher, estou de alma e coração com ele. Se eu tivesse nascido mulher, e pudesse então compreender o que compreendo agora, que terrível seria isso para mim; se eu tivesse nascido mulher e se me visse por conseguinte incapaz de compreender a minha sorte, isso então é que seria muito mais terrivel para mim!”[4]
Terrível é, tudo isto, para as mulheres que são, realmente, MULHERES.[5]
[1] Kierkgaard,S. O Banquete- In Vino Veritas, Lisboa, Guimarães & Cia Editores, 1954,(trad. Alvaro Ribeiro).
[2] Idem, p. 115
[3] Ibdem, p.132-133
[4] Ibdem. p.145.
[5] No Banquete os amigos se encontram para, em nome do vinho, falarem verdades (In vino veritas) e olhem, as mulheres, o resultado. Esclareça-se, ainda, que Soren Kierkgaarden viveu de 1813-1855.